Por Luís Fernando Praga

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Marina entrou no avião como quem embarca num sonho bom. Classe econômica, assentos quádruplos, bem apertadinhos, mas o voo era o de menos. Ela queria férias, Sol, praia e conhecer o nordeste.

Ivan conferiu Marina de cima a baixo, tirou o chapéu, pediu licença, acomodou-se a seu lado e foi puxando prosa.

_ Que chuva da peste! São Paulo não é pra mim não, já não via a hora de voltar!

_ Verdade… Mora aqui há muito tempo?

_ Moro? Moro não! Vim no fim de semana, passear, fazer umas comprinhas e já tô voltando. Mas tá tudo pela hora da morte! Desse jeito não dá! Bando de ladrão, corrupto, e é nóis que paga a conta, não é mesmo?

_ É, corrupção é um problema sério…

_ Ah, mas agora a gente arranca eles de lá nem que seje na porrada, não é não?

Enquanto Marina pensava para responder, chegou Maciel. Paletó e gravata, cabelo bem cortado, barba impecavelmente aparada e perfumoso. Inspecionou os dois, olhou seu bilhete e acomodou-se de modo a deixar Ivan entre ele e Marina. Mais uma vez, fez uma “varredura” em Ivan, afastou-se o máximo que a estreita poltrona permitia, tirou a revista da pasta e enterrou os olhos nela.

Ivan leu a revista de Maciel e comentou antes que Marina precisasse responder se ia ter que arrancá-los de lá nem que fosse na porrada.

_Tá vendo? Olha, agora ele não escapa! Triprex no Guarujá!

Maciel olhou irritado para Ivan. Marina comentou.

_ Vamos deixar que investiguem. Seria bom que toda suspeita de corrupção já viesse sendo investigada há muito mais tempo…

Maciel bufou, deu as costas para ambos e monopolizou a revista, mas eis que entra em cena o Seu Custódio. Negro, magro, velho, trajando roupas muito simples e esbanjando uma rara dignidade. Seu Custódio pediu licença humildemente e instalou-se ao lado de Maciel, que olhou enojado e “endireitou-se” no assento.

_ Oh, saudade da minha terra! _ Seu Custódio disse, olhando para as costas da cadeira da frente, depois olhou os outros três. Marina sorriu e ele sorriu de volta.

Ivan acotovelou Marina e disse, chegando a boca pertinho do ouvido:

_ Hoje em dia qualquer um viaja de avião, não é não?

_ É mesmo… Bom, não é não?

_ Ah, não sei, não! Não sei se essa gente sabe se comportar e também se nossos aeroportos têm condições de suportar a demanda. Se todo mundo resolver, já viu, né?

_ Bem, é minha primeira viagem e espero saber me comportar,

respondeu Marina com um sorriso irônico.

_ Ah, eu já viajei de avião antes…

_ É? Muitas vezes?

_ Não, só na vinda, kkkk!

Ivan gargalhou e acotovelou as costelas de Marina e de Maciel, que espancou seu braço com a revista, mas Ivan levou na brincadeira.

Seu Custódio falou:

_ É minha primeira vez também, vim há 40 anos num pau de arara e só estou voltando agora.

_ Não devia era ter vindo!

Maciel falou baixinho.

_ Ah, mas era preciso. A seca era demais, ou eu vinha ou morria de fome… _ Respondeu Custódio, mostrando que tinha boa audição.

_ Sei como é. E por que é que tá voltando? O nordeste ainda tem seca, sabia não?

Ivan falou com desdém.

_ Sei sim! Tem lugar que ainda é uma secura só, mas lá no meu sertão, por exemplo, fizeram muitas cisternas, já foi bem pior, hoje criança não morre mais de fome.

_ Isso eu não nego, mas pelo tanto que eles roubam, fizeram foi é pouco.

_ Bem, pra mim, que vivi no tempo dos que não faziam nada, melhorou foi demais!

_Ah, o senhor tá do lado deles, né? Deve ter ganhado alguma “bolsa safadeza” ou um pão com mortadela pra ficar defendendo essa corja. Nosso país tá num buraco sem fim é por causa de gente como o senhor, que protege ladrão!

_ Não defendo ladrão. Só sei que passei fome, quase morri, sofri no Nordeste e aqui em São Paulo, passei necessidades por anos, hoje não passo mais e sei que tem muita gente como eu nesse Brasilzão.

_ Assistencialismo populista, isso sim! Dão dinheiro para miserável preguiçoso em troca de votos e desviam da saúde, da educação, não incentivam a indústria e colocam o país na merda! Quem aprova isso é defensor de ladrão, sim senhor! País de ignorantes! _ Maciel falou asperamente e Ivan o cumprimentou, agarrando a mão que segurava a revista e balançado com força.

_ Ehê! Esse é dos meus! Logo se vê que é um homem lido e bem informado.

_ Então me deixe continuar lendo, que não sou um “dos seus” coisa nenhuma!

Ivan, que parecia ser daquelas pessoas com o desconfiômetro desregulado, acreditou que a hostilidade de Maciel fosse de brincadeira, riu novamente e comentou:

_ Lê e depois conta pra nóis quando é que vão prender a quadrilha e botar tudo os cupincha pra correr daqui! kkkk.

Marina interrompeu:

_ Vocês sabem que existe quem perceba a realidade de uma forma muito diferente dessa sua? Sabem que ninguém precisa acreditar, à força, nas suas suposições? Ninguém que raciocine por conta própria deve aceitar um pensamento com o qual não concorde, só por medo de ser diferente do restante do rebanho. Vocês estão tratando seres humanos respeitados por mim e por milhões de pessoas, dentro e fora do Brasil, de uma forma muito baixa e covarde. Na competição de ofensas de baixo nível e em espalhar o ódio vocês já ganharam, mas isso não vale ponto algum para se construir um país melhor. Coisa chata!

Ivan retrucou:

_ Homi, não seje inocente, não seje uma vendida, tá na revista, não tá vendo a crise, o desemprego, as empresa fechando!?

_ Olha, até vejo. Vejo uma crise econômica, uma política, mas a pior crise que vejo, e pra vocês deve passar como um detalhe desapercebido, é a crise do desrespeito com o ser humano, isso acaba com meus dias muito mais do que viver com pouco dinheiro. Por eu não usar esse cabresto que a grande mídia distribui e que muita gente usa achando que está na moda, me recordo de inúmeros casos de corrupção envolvendo valores altíssimos que “acabaram em pizza”; hoje tem investigação e gente sendo presa. Eu me recordo de taxas de desemprego, de juros e de inflação muito mais altas do que as atuais. Me recordo de uma dívida externa astronômica e impagável, que foi paga. Me recordo que já fecharam o Mappin, a Mesbla, a Arapuã, a Varig, os bancos Bamerindus e Nacional, a construtora Encol, a Transbrasil etc. Pode até haver crise, mas nunca vi tanto paulista odiando nordestino, tanto fascista desabrochando sem perceber e querendo ver sangue, tanta gente destratando gente e se achando dono da verdade como vejo hoje.

Maciel olhou nos olhos de Marina e zangou-se, mas o avião decolou e tanto Ivan quanto Custódio apertaram forte os braços do Maciel e Marina riu.

_ Você ri, não é? Não percebe que essa gente está tirando o que é nosso? Nosso trabalho, nossas riquezas, nossa cultura, nossos valores? Você quer entregar, de mão beijada o que nossos antepassados deram duro pra conquistar?

Ivan pensou que era com ele e respondeu, ainda segurando Maciel pelo punho:

_ Não tô rindo não, só mostrei os dente foi de medo de avião mesmo! Concordo com o senhor, esses comunista, esses ladrão vai acabar com tudo o que a gente tem de bom! Tomara que ainda deixem umas popozudas, não é mesmo? Kkkkk…

Maciel livrou-se do apertão dos vizinhos. Então Ivan apertou a bíblia contra o peito e Custódio segurou a figa que trazia pendurada no pescoço.

_ Era só o que me faltava, além de nordestinos, um crente e um preto macumbeiro. Eh, Brasilzinho de merda, povinho ignorante!

Ivan reparou no amuleto de Custódio, fez o sinal da cruz e disse um “creio em Deus pai” acompanhado de um “vade retro, satanás”.

Então Custódio falou:

_ O senhor não me ofende dizendo que sou preto e macumbeiro, apesar da intenção de ofender e do tom pejorativo que suas palavras trazem. Sou preto e fui criado na umbanda, sou filho de Oxum e não tenho motivo algum para me envergonhar disso, pelo contrário, me orgulho da minha cultura e de ser feliz como sou. Concordo com a moça, tem gente fazendo questão de viver no pessimismo, carregando um peso negativo, torcendo pelo sofrimento alheio e culpando os outros pela sua infelicidade… Não dá pra lembrar que a gente está passeando?

Maciel ficou bravo.

_ Eu não estou passeando! Viajo a trabalho! Não sou vagabundo pra ficar passeando à custa de bolsa vagabundagem. Diferente de quem apoia esta corja eu acredito que o dinheiro e o patrimônio se fazem com trabalho honesto, não com esmola, preguiça e roubo! Olha aqui oh, sabe ler?!

E esfregou a revista nas fuças do Custódio, que respondeu.

_ Pois é, meu senhor, quem lê uma revista e não questiona tende a fazer um julgamento simplista demais. O senhor acabou de rotular seus companheiros de voo como vagabundos, preguiçosos, corruptos e ladrões, sem saber absolutamente nada sobre nossas vidas. E quantos mais vocês têm colocado nesse mesmo balaio? Por isso eu prefiro não levar em consideração ofensas desse tipo, elas costumam se basear no preconceito, na parcialidade e em meias verdades. Só quem precisa saber o quanto eu trabalho, se sou ou não honesto e estar em paz com essas informações, sou eu mesmo, os outros vão acreditar no que quiserem. Sou marginalizado por ser pobre, negro, também pela minha religião e até por ser velho, mas sou ser humano como o senhor e tenho sentimentos. Por mais que lhe pareça estranho, aprendi a ler bem cedo e devo lembrar que hoje podemos escolher o tipo de leitura e de informação que desejamos receber, houve um tempo em que não tínhamos escolha. Minhas fontes de informação são diferentes da sua. Eu também não enxergo o país numa situação tão terrível como pregam. Vejo nossos problemas particulares e outros que são mazelas globais e não se restringem ao Brasil, mas pela primeira vez na vida estou num avião. Meu filho vai ser médico e viajo para sua formatura.

Maciel ficou vermelho, Ivan fingindo ler a bíblia e Marina comentou:

_ É, na pior de todas as crises, se eu olhar o que realmente acontece ao meu lado bem agora, vejo um nordestino que veio de avião fazer turismo em São Paulo, um senhor muito bem alinhado que apesar do mau humor não parece estar numa situação tão crítica e outro nordestino que já sofreu muito na vida e agora está voltando pra sua terra de uma forma muito mais digna do que quando veio e verá seu filho se formar em medicina. Isso não está na revista?

Ivan intercedeu em favor de Maciel.

_ Não, moça bonita, o que tá na revista é que logo os seus adorados bandidos vão tá atrás das grades! Vamos construir um país melhor quando esse lixo de partido acabar e o bandidão chefe for pra cadeia com a vadia dele.

_ Você sofre de indignação seletiva! Não aceita o fato de que eu não participe dessa sua odiosa caça às bruxas. Você não consegue entender que eu não protejo ninguém, que desejo justiça, quero que se apure toda a corrupção e que se puna quem deve ser punido, mesmo que eu admire e respeite. Você não consegue aceitar que eu veja um panorama diferente do seu, com causas e soluções também diferentes das suas. Você sabia que, historicamente, jamais um grupo de perseguidores fanáticos donos da verdade foi lembrado como os “mocinhos” da história? Melhor não discutir enquanto o nível for este.

Agora Maciel foi em socorro de Ivan:

_ Bom, se eles fingem que não veem o que a revista de maior vendagem no país está cansada de mostrar, ou são burros ou estão lucrando algum também. Deixa eles, que a deles está guardada!

Seu Custódio respirou e contra-argumentou:

_ Estou tranquilo em não me guiar pelas informações que vêm de um semanário tantas vezes processado por calúnia e difamação, que já concedeu, judicialmente, inúmeros direitos de resposta a pessoas e instituições comprovadamente caluniadas. A revista de maior vendagem no país tem o intuito de ser vendida em larga escala e de dar muito lucro, não de ser verdadeira e imparcial. Para isso, ela precisa ser sensacionalista, exagerar na dose e no tom, polarizar e criar polêmica, tudo para vender.

Caso vejam as últimas 48 capas dessa revista, o que corresponde a um ano de publicações, e não percebam uma tendenciosidade muito suspeita, caso acreditem que a revista de maior vendagem desse país, que vocês adoram dizer que é de corruptos e ignorantes, seja idônea e comprometida com a verdade, caso entendam que ela está acima de qualquer suspeita, que não se vende a interesses políticos e econômicos, que seja destinada ao esclarecimento e que seja lida pelos raros não ignorantes desse país, é porque a revista foi feita para vocês mesmo, está conseguindo atingir suas metas e chegar a seu público alvo.

Mas, queiram vocês ou não, queira a revista ou não, a ONU divulga que cerca de 40 milhões de brasileiros deixaram a linha da miséria durante este governo tão odiado por vocês. A evasão escolar diminuiu significativamente. Pessoas com menor poder aquisitivo tiveram mais acesso à cultura, à formação acadêmica e ao mercado de trabalho. Queiram ou não a revista e os fascistas, um preto, pobre e cotista, o meu filho, está se tornando médico, com ótimo desempenho numa boa universidade pública. Isso não transforma nenhum ser humano em santo ou em herói, mas no mínimo torna legítimo que uma grande parcela da população tenha motivos para ser grata, para ler outras revistas, assistir a outros canais de TV e para questionar os motivos de tanto ódio.

Então, não espero que se convençam de que a ideia que defendem esteja equivocada nem de que a mídia que compram seja tendenciosa e hipócrita, mas talvez fosse interessante para todos que não se apegassem tanto a odiar e perseguir aqueles que se valem de outras fontes de informação.

_ É, uma vez petralha, sempre petralha!

Maciel falou alto e dirigiu-se ao toalete. Voltou após meia hora e encontrou Marina e Seu Custódio conversando animados. Ivan fingia dormir. Maciel sentou-se e Custódio respondeu à provocação.

_ Mais uma vez o senhor julgou desnecessariamente e acabou errando de novo. Não que eu precisasse me explicar, mas talvez seja útil para o esclarecer daqui pra frente. Pessoas não cabem dentro de rótulos. Sou tão avesso à corrupção como você, ou mais; só a combato de forma diferente. Não tenho fidelidade a nenhum partido político, não creio na completa idoneidade de nenhum deles, considero que a política partidária tenha se tornado podre e enganosa. Mas acredito que haja seres humanos bons e merecedores de confiança em muitos partidos, talvez em todos.

Não odeio partidos, não odeio pessoas, mas sou opositor a um sistema que privilegia os que já têm muitos privilégios, que prioriza enriquecer os que já são muito ricos, que estimula a ganância e a corrupção dizendo que nada é mais importante do que consumir, que escraviza vidas dizendo que nada é mais importante do que produzir. Sou opositor ao ódio e não é possível me opor ao ódio odiando.

O avião pousou e Maciel retirou-se às pressas, Ivan fingiu acordar e o acompanhou.

Marina deu um forte abraço em Custódio, desejou uma boa formatura a seu filho e despediu-se. No traslado para o hotel viu a praia, o Sol, o mar, a vida, o céu azul e pensou que preferia mesmo acreditar na frase de alguém que disse “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia” a crer na frase de milhares que gritavam, com sangue nos olhos, “a culpa é da estrela!”.