Por Evandro Coggo Cristofoletti

Daniel Arroyo
Foto: Daniel Arroyo

Um dos grandes lemas liberais repetidos infinitamente em debates políticos é o famoso “não existe almoço grátis”. O bordão – ou senso comum – é utilizado para alertar as pessoas de que reivindicar direitos sociais, gratuitos, é incompatível como uma dinâmica econômica de mercado onde tudo se transforma em produto e, sob a lógica do consumo, devem ser vendidos e, portanto, pagos. Não existe, nesse raciocínio, a gratuidade, pois educação e saúde públicas, por exemplo, seriam custeados com o dinheiro dos contribuintes.

O argumento é falacioso em diversos sentidos. Nenhuma reivindicação prega a gratuidade de direitos sob a ilusão de que não há custos de execução envolvidos. Uma das soluções, por exemplo, é a distribuição coletiva dos custos através de impostos e taxações progressivas (que os mais ricos paguem mais e que os mais pobres paguem menos).

Os custos são distribuídos pois entende-se que, por serem direitos sociais, por princípio, a lógica de consumo não pode ser usada e, consequentemente, a aferição de lucro e a livre concorrência, geradores de desigualdades, não podem ser aplicadas.
O curioso, hoje, é que o mesmo argumento “técnico” historicamente utilizado por setores mais à direita do espectro político passa a ser utilizado frequentemente pelos governantes que se dizem de esquerda.

É o caso das manifestações do Movimento Passe Livre (MPL).

Recentemente, o prefeito Fernando Haddad deu declarações que zombam das pautas do movimento, indicando que não há meios técnicos de se implementar uma possível tarifa zero ou abaixar a atual tarifa (R$ 3,80). O argumento principal é de que o subsídio para arcar com um transporte gratuito comprometeria as despesas com outros gastos essenciais.

Porém, simples exercícios hipotéticos mostram que há possíveis cenários técnicos para o problema. Aliás, uma rápida passagem pelos sites do movimento nos mostra que há propostas bem mais concretas e exemplos práticos reais que derrubariam o mito da “reivindicação utópica”.

Não estamos argumentando que é uma pauta fácil de ser conquistada. Muito menos desconsiderando que, mesmo se o prefeito Haddad fosse mais adepto à causa, as mudanças aconteceriam automaticamente. Pelo contrário, haveriam disputas sangrentas no legislativo, contra-ataques midiáticos e etc. Porém, negar as pautas do MPL, ironizá-las, e usar os famosos bordões e argumentos da direita contra o movimento, dificulta ainda mais um processo de mudança real.

Nesse contexto, o movimento está sob ataques de governistas (PT) e de tucanos (PSDB). Até há algumas tentativas, por parte da prefeitura, de debater as pautas, mas são tão simbólicas e cínicas quanto as declarações de que a PM está agindo de forma correta nos protestos.

Podemos, agora, ligar alguns pontos.

Os principais argumentos utilizados para frear as pautas do MPL tem a mesma base teórica do bordão “não existe almoço grátis”. Assim, advoga-se que o modelo técnico de execução da política de transporte não permitiria que Haddad e Alckmin levassem as propostas do movimento a sério, pois “custa muito, alguém tem que pagar, não existe almoço grátis”. Ao que parece, a direita e “esquerda” compartilham da mesma base teórica e prática de ação neste caso.

Seria mais racional acreditar que, na verdade, os argumentos utilizados por ambos são cínicos e escondem uma possível motivação mais forte: as empresas de transporte são aliados muito poderosos dos partidos e não podem ser questionadas. Nesse sentido, muitas perfumarias que Haddad vem implementando não tocam nos problemas estruturais da cidade, mas parecem agradar uma classe média “gourmet”.

Muitos irão se perguntar porque o autor deste texto escolheu o prefeito do PT como alvo e não o governador do PSDB. A resposta é simples e não é de nossa autoria: “melhor um inimigo declarado do que um inimigo disfarçado”. Na verdade, essa dicotomia entre PT e PSDB parece ser cada vez mais simbólica e eleitoreira. Nesse sentido, não pautamos nossa crítica baseadas nesta dicotomia. Ambos merecem ser criticados. Mas é preciso ter em mente que, quando uma suposta esquerda começa a se aproximar cada vez mais dos pressupostos de uma antiga direita, talvez seja um sinal de que elas começam a se tornar uma única entidade, cujas diferenças se resumem muito mais por políticas de perfumaria de “face humana” do que tentativas de mudanças estruturais na própria concepção do que é governar e de como governar.

De fato, governistas se negam a retomar uma noção bem básica de esquerda: não há razões puramente técnicas que escapem do escopo das decisões políticas.

No fim das contas, violenta é a tarifa.

Evandro Coggo Cristofoletti, Mestrando em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp.