milky-way-916523_640

Por Cintia Lais

Há o sarcástico predomínio do caos com sua enorme desordem sufocando os desígnios no ar.

Na última noite, munida de um bloco de notas, eu estava destinada a um instante de epifania que me permitiria escrever sobre a ironia contida no surgimento involuntário da vida nesta pequena esfera rochosa imersa em um universo decadente. Você, estimado leitor, estava destinado a ler, neste exato momento, um maravilhoso ensaio sobre a tragicomédia humana. O problema é que, no meio do caminho, fomos atingidos em cheio por uma Bic azul ponta fina que estava predestinada, desde tempos imemoriais, a falhar. Já estava escrito. Ou melhor, não estava. A aleatoriedade venceu a profecia, de modo que, por ora, tudo que podemos fazer é lamentar os estragos incalculáveis que uma caneta de um real pode causar. Afinal de contas, meu insucesso literário e a frustração de sua leitura reflexiva estão longe de ser os únicos casos de desgraça resultantes da falta de uma caneta.

Pense em todos os vestibulandos que perdem suas vagas na universidade, ano após ano, em consequência de uma caneta que não chegou ao fim da redação. Ou pior, que se recusou a iniciar o preenchimento do cartão-resposta. Imagine todas as cartas jamais escritas ao longo dos séculos por causa de uma caneta – ou pena – defeituosa. Ou todos os amores certos que se perderam numa malograda troca de números de telefone na balada. Quando foi que passamos a confiar nosso porvir a um instrumento tão incerto e temperamental? Numa era em que a manipulação genética tem nos guiado, a passos largos, rumo a um futuro sem surpresas, como é que ainda deixamos uma porta tão grande para o acaso em nossas vidas? É inaceitável que experimentemos tamanho desconforto e apreensão quando, por algum motivo obscuro, ainda escolhemos o papel em detrimento de nossos incríveis smartphones e notebooks. Talvez seja o último fôlego do homem primitivo em nossa alma, que, saudosista, insiste na ideia de que há alguma beleza no caos.

Na última noite, arrastei com força a ponta da caneta sobre o papel. Esfreguei-a entre as mãos. Assoprei. Nada. Depois de ver todas as esperanças minguarem em meio às tentativas desesperadas de conseguir um traço de tinta, voltei a pensar na condição humana. Considerei este planetinha tão vulnerável destinado a carregar a única espécie conhecida capaz de buscar algum propósito na existência, e que, a qualquer momento, pode ser atingido por um meteoro malfadado. Lancei um olhar resignado sobre a página branca. Nas bandas de cá da Via Láctea, às vezes, não importa o tamanho do esforço, a caneta simplesmente não funciona; o amor não basta; o remédio falha. Resta-nos, então, contemplar, nas folhas em branco, nas fotos antigas, nas noites eternas, “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”. (Cintia Lais)