Por Marcelo Hilsdorf Marotta

Eu vejo pouco ou nenhum problema na comoção geral em relação ao assassinato bárbaro do Cecil, o Leão do Zimbabwe, especialmente porque ele foi cometido não por um sujeito que vive às margens do sistema e da sociedade, mas por alguém que é exatamente o emblema e o ideal perfeito dele: um cara bem sucedido, que tem um emprego e uma posição honrada na sociedade, que viajou o mundo todo, um cara branco com um belo sorriso fruto de um belo tratamento dentário que a profissão dele permite a ele possuir, enfim, o cara que todo o status quo, aí incluídos toda a mídia hegemônica e o sistema de ensino que temos hoje na maior parte do globo, vende exaustivamente como sendo o modelo por definição que todos nós deveríamos copiar e reproduzir: é o famoso self made man ou o sonho americano, que se espalhou pelo globo com a dominação cultural dos EUA depois da II Grande Guerra.

Por isso, acho muito estranho certas críticas que perdem de vista esse aspecto fundamental do problema para desqualificar o fato da vítima ter sido um leão e não um ser humano, porque no fundo é a mesma coisa. Já passou do momento de todos perceberem que os animais não são evolutivamente inferiores aos seres humanos dentro do conjunto de todos os seres vivos, eles não tem um cérebro “menos” evoluído que o nosso, e que nós, seres humanos, não somos mais humanos que os animais – tudo aquilo que eu entendo por humanidade num ser vivo eu tenho encontrado com mais frequência nos animais das mais variadas espécies do que nos próprios seres humanos ultimamente. Não se trata de dizer que eles não são tão humanos como nós, que eles não desenvolveram coisas complexas como a arte, a filosofia, as viagens para o espaço, etc, mas de compreender fundamentalmente que nós somos incomensuravelmente muito piores do que eles em termos disso que nós chamamos de animalidade, isto é, o comportamento selvagem, eminentemente destrutivo, que nos torna capazes de assassinar outros seres vivos sem que isso implique necessariamente a saciedade da fome, instinto primário por excelência junto com o instinto sexual de reprodução. Aliás, desse ponto de vista, animais não são tão machistas quanto o ser humano. Por tudo isso, o grande desafio que temos pela frente é o enfrentamento de nossa dimensão animal, porque só dessa forma, e envolvendo o estudo e a compreensão da mesma dimensão nos demais seres vivos colocados sob os mesmos patamares que os nossos, é que poderemos quem sabe um dia, num futuro que até agora tem toda a probabilidade de nunca se concretizar, encontrar nossa própria humanidade perdida.

Agora, tudo isso não quer dizer que o caso do Cecil seja um caso isolado, e historicamente são casos marcantes como esse que acabam por contribuir para a mudança significativa de alguns padrões sociais absurdos que ainda mantemos, como é o caso de todo tipo de caça predatória que não envolve a necessidade incontornável de saciar a fome. Isso é assassinato, e deveria ser tratado como tal juridicamente, como se a vítima fosse um ser humano como nós, isto é, um semelhante, porque somente dessa forma que a natureza verdadeiramente bárbara do crime – caçar até a morte, arrancar a pele e degolar a cabeça de um outro ser mais humano do que nós mesmos – pode se destacar sobre a enganadora diferença entre as espécies. É esta uma das formas de pelo menos mitigarmos de algum modo esse crime que quase toda a sociedade global é responsável: a sexta extinção em massa, com a qual muitas espécies desaparecerão definitivamente do planeta, sendo que uma das prováveis vítimas no futuro próximo será o próprio ser humano.

Charles Le Brun, Três cabeças de homens em relação ao Leão, 1690. 21,7 x 32,7 cm. Museu do Louvre, Paris.
Charles Le Brun, Três cabeças de homens em relação ao Leão, 1690. 21,7 x 32,7 cm. Museu do Louvre, Paris.

Desde a Antiguidade, pelo menos, temos diversos registros escritos que documentam práticas certamente muito mais antigas que consideram o Leão como o símbolo da coragem por excelência. Essa idéia está presente desde a Épica de Gilgamesh a Homero e foi sistematizada nos chamados Tratados de Fisiognomonia, do qual o do autor conhecido hoje como Pseudo-Aristóteles é um dos precursores. Esses tratados visavam estabelecer um sistema teórico e prático para identificar características internas, psicológicas e relativas ao caráter humano, ou seja, temporárias ou inatas, a partir da aparência externa, especialmente a face. Um dos critérios utilizados para estabelecer esse sistema de comparações era justamente a semelhança física com algum animal. Nesse sistema, se considerava que as pessoas que possuíssem os traços físicos do rosto parecido com aquele do leão tinham as mesmas características anímicas atribuídas a esses seres, como vocês podem ver na imagem acima, uma obra produzida pelo artista principal de Luís XIV, Charles Le Brun, como uma das ilustrações das suas palestras sobre a Fisiognomonia.

Não levará muito tempo, se as coisas continuarem no ritmo atual, para que nós sejamos conjuntamente responsáveis pela extinção dessa majestosa espécie dos leões: será o dia em que teremos aniquilado definitivamente a Coragem da face da Terra, e teremos que nos contentar a partir daí apenas com a nossa própria covardia, afinal, matar um Leão nada mais é do que isso, um gesto de profunda covardia. Como eu disse, o Leão é mais humano do que nós mesmos, e só os fracos de espírito e os covardes é que desenvolvem a necessidade de subjugar uma espécie mais bondosa do que a nossa. Para haver coragem, realmente, o ser humano teria que enfrentar uma espécie mais nociva ao restante do planeta e a si mesmo do que ele mesmo. Essa espécie hipotética inexiste nos registros sérios da História até hoje. E provavelmente seremos extintos antes de descobri-la em algum recanto obscuro do imenso, descomunal e desconhecido universo.