Por Marcelo Hilsdorf Marotta

Felizmente, o cinema existe para além dessa efeméride que conhecemos como o Oscar. Há muitos comentários na imprensa, nas redes sociais e na boca pequena sobre o que significa esse evento e qual a sua representatividade e significação para a produção cinematográfica mundial. Em todas as áreas, cada vez mais os prêmios e distinções se afastam dos critérios de qualidade para premiar obras segundo critérios extra-artísticos. Meu propósito aqui não é falar sobre esses critérios, mas aproveitar a oportunidade de certas obras estarem – dentre muitas outras que não estão, vale dizer, e que são tão boas quanto – no centro das discussões públicas, especialmente porque é nesse momento, isto é, por causa do Oscar, que os críticos de arte saem à campo para colocar em marcha um debate que no mais das vezes é pontuado pela falta de rigor e ponderação. São esses críticos que acabam disparando em suas resenhas certas visões estereotipadas acerca das obras que são muito prejudiciais às mesmas e à formação de um público hábil e sensível, capaz de construir suas próprias versões interpretativas diante da arte que sejam minimamente calcadas na observação atenta dos elementos que as próprias obras não cansam de nos fornecer. Por isso, queria aqui oferecer algumas considerações breves acerca de três filmes que ora concorrem ao Oscar, Whiplash, Birdman e o American Sniper. O objetivo é passar a limpo certas noções equivocadas que surgiram acerca dos filmes na visão apressada dos críticos e que podem ser encontradas também na opinião de muitos que não tiveram o contato com as críticas mas que também avaliaram os filmes de forma pouco cuidadosa, normalmente desprezando os inúmeros indícios que as próprias obras fornecem como testemunhos de si mesmas. Não por acaso, os três filmes escolhidos são três obras sobre as quais se criou maior grau de polêmica. Há também outros elementos que as assemelham, como veremos mais abaixo.

Pois bem, tenho lido nos últimos dias algumas críticas aberrantes de tanto simplismo e má vontade da parte de certos “críticos”. Infelizmente, se tornou deveras comum a confusão entre o que consiste propriamente uma crítica de arte e o simples ato de falar bem ou falar mal de uma obra. A crítica pressupõe sempre a preocupação não de julgar se a obra presta ou não mas de chamar a atenção do receptor leitor/espectador/ouvinte – afinal, é a ele que a crítica se destina, porque se a crítica se destinasse aos artistas, seria mais correto ao crítico realizar a sua própria obra, afinal, à rigor as obras de arte dialogam apenas entre si mesmas – sobre os elementos intrínsecos e extrínsecos à obra que sejam significativos para a sua compreensão e entendimento. Como tais, esses elementos são sempre de natureza discreta e concreta, isto é, são detalhes materialmente sensíveis da obra que possuem a característica de funcionarem como faróis da interpretação, de forma que, na impossibilidade de elencar ao mesmo tempo todos os elementos sensíveis distribuídos pela unidade continua da obra, o intérprete sempre opera uma seleção daqueles que servem como condutores de um discurso, tal como um conjunto de sinais de fogo vai iluminando progressivamente os pontos mais altos da paisagem no sentido de sinalizar alguma mensagem relevante de um ponto aos outros do território. Isso quer dizer, antes de mais nada, que essa interpretação crítica opera dentro de uma temporalidade, que organiza esses sinais segundo um ordenamento contínuo, aspecto bastante relevante especialmente se estamos falando do cinema. Contudo, esses faróis não funcionam tal como um telégrafo, pois as relações internas que constituem uma obra de arte não são de natureza linear e progressiva, uma vindo necessariamente depois da outra, do começo até o final, mesmo no caso do cinema. Quando pensamos num filme, seja enquanto o assistimos seja depois de o termos assistido, não há necessariamente uma ordem inexorável que vai surgindo em nossa mente que organizaria o conteúdo do filme numa única sequência possível, mas tantas sequências possíveis que vão se ramificando, algumas vezes voltando para trás, refazendo certos percursos já feitos, inclusive estabelecendo conexões com elementos mais distantes sem a mediação de elementos supostamente intermediários, pois o que o ocorre, ainda que estejamos falando de cinema, ou seja, de uma sequência de cenas e ações que se sucedem no plano da tela, é que, no processo de recepção de uma obra, todos os elementos já absorvidos podem ser simultâneos na consciência do receptor, inclusive aqueles que são extrínsecos à obra em questão. O importante é percebermos que para fazer sentido – e a crítica, talvez à diferença das obras, muitas vezes precise fazer sentido – a crítica também tem a necessidade de construir o seu próprio discurso a partir de elementos palpáveis, ou seja, em resumo, confundir crítica de arte com mera opinião pessoal – a velha doxa platônica – implica em não falar das obras, mas de si mesmo.

WHIPLASH, BIRDMAN & AMERICAN SNIPER

[o que segue contém alguns pequenos spoilers]

Por isso, muitas vezes, se o “crítico” disse que o filme é chapa branca, que faz apologia a isso ou aquilo, que defende uma tese clara e distinta, é porque o tal “crítico” só enxerga o que ele mesmo consegue produzir. Tem detalhes – “deus está nos detalhes”, já dizia Aby Warburg – que são essenciais para compreender as obras. E com uma ou outra rara exceção, muitos que resolveram fazer a crítica dos filmes em questão passaram como tratores por cima desses detalhes. Um conhecido “crítico” da Folha falava, outro dia, com toda a superioridade de quem se considera moralmente acima das obras em questão, sobre o caráter supostamente apoteótico do final de American Sniper. Apoteose é um termo do grego antigo que significa literalmente o processo pelo qual alguém sobe para cima – se eleva aos céus – ao se tornar deus. Figuras mitológicas como Hércules ou Enéias, nascidos mortais, ainda que de ascendência divina, sofrem apoteose depois de mortos, não por causa dessa ascendência, mas devido ao conjunto de feitos pelos quais se tornaram célebres. Muitos antigos romanos acreditavam na apoteose de alguns de seus imperadores. Havia em Roma, inclusive, um culto propriamente dito aos Imperadores, isto é, dado à sua natureza divina, graças às apoteoses que sofriam, em geral depois de mortos. Para marcar esse processo, os artistas realizavam imagens que eram inauguradas em importantes monumentos públicos ou mesmo cunhadas em moedas mostrando os imperadores subindo aos céus ou junto dos deuses Olímpicos, enquanto algumas vezes a deusa Niké, a deusa alada da Vitória, coroava o triunfo da ascensão à condição divina com uma coroa de louros, a mesma destinada aos poetas, heróis e atletas virtuosos, como vemos na imagem abaixo da Apoteose de Homero de Ingres e mais abaixo na imagem da Apoteose de George Washington, já apropriadamente instalado em majestade nos céus. Durante muitos séculos, apenas sugerir possuir a condição divina enquanto ainda vivo podia ter sérias consequências. Essa foi, inclusive, uma das principais motivações por trás do assassinato de Júlio César pelos partidários da velha ordem republicana romana. Não por acaso – isto é, se desconsiderarmos as inúmeras semelhanças práticas com os Democratas – o Partido Republicano nos EUA é considerado formalmente como o partido conservador, da mesma forma que os republicanos em Roma também o eram. Esse republicanismo ao qual o nome do Partido faz referência é cheio de privilégios de toda ordem, é certo, mas construído sob certa ordem moral do que seja justo ou injusto, apropriado ou não apropriado. No entanto, existe um abismo imenso entre a posição política conservadora mas tacanha de uma Sarah Palin, por exemplo, e a de pessoas como Clint Eastwood, cultas, acostumadas não apenas à frequentação cosmopolita das artes, das letras, das humanidades e das ciências em geral mas ao seu patrocínio, produção e estímulo constante, coisa bem diversa do que ocorre num país como o Brasil, onde a elite, com raríssimas exceções, tem esse perfil tacanho da Sarah Palin. Infelizmente, figuras como Clint Eastwood hoje tem se tornado mais raras, mas elas ainda existem. Nós aqui no Brasil praticamente não temos exemplos de uma direita pensante, inteligente, com a qual vale a pena dialogar, pois afinal é a isso que a experiência da democracia – republicana, diga-se – diz respeito. Isso significa que artistas como Clint Eastwood podem defender o Partido Republicano sem que isso implique que suas obras como cineasta sejam grosseiras, simplistas, meramente patrióticas – no sentido em que o Capitão América é patriótico – ou, como diz o tal crítico da Folha, que o American Sniper possua um final apoteótico. O tom das obras de Clint Eastwood nada tem a ver com esse tom apoteótico. São todas obras ponderadas, onde se pode sentir a respiração pausada, equilibrada, terrena do ritmo que o diretor confere aos seus filmes e atuações, mesmo nos momentos de maior tensão ou confusão dramática. Ora, como é o final de American Sniper? Por acaso a música que acompanha as imagens finais é triunfal, marcada por um rufar de tambores ou algo parecido, elevando o personagem à consagração absoluta? É esse o final que o filme mostra para o personagem? A câmera ascende aos céus ou há algum indício concreto de que o personagem ascendeu aos céus, como uma suposta imagem dos céus se abrindo? Se não, não há porque gastar saliva inutilmente com adjetivações tolas, a não ser, é claro, que a apoteose no caso seja a pretendida pelo “crítico”, que se auto-eleva aos céus da vaidade pela sua própria presunção crítica enquanto a obra, o filme, permanece para ele muito colado à própria mortalidade, pueril, simplista, em suma, “patriótico” – a tal ponto que o crítico compara o filme à mente de um imbecil do nível de George W. Bush. Quem viu o filme direito, isto é, com atenção aos detalhes, sabe que esse tipo de consideração não tem cabimento. Desde quando podemos falar de um típico e patriota Herói Americano quando este conclui sua suposta ascensão dentro de um caixão, depois de ter sido morto por um colega veterano que compartilha, em maior ou menor grau, da mesma loucura que o suposto herói, a qual atinge, como sabemos – e o filme não deixa de mostrar esse e outros diversos aspectos colaterais -, uma porcentagem muito alta de veteranos quando retornam do front? Há alguma glorificação aqui, em terminar a história debaixo da terra? Há alguma apologia da guerra ou do dever pátrio ou, ao contrário, um convite aberto à reflexão? Supor tratar-se de Apoteose é de uma ofensa à riqueza e à sutileza da obra, à inteligência do diretor e do espectador. Não somos tão estúpidos. Vejam abaixo a imagem de George Washington: não por acaso, quem sofre apoteose é ninguém menos que o primeiro presidente dos EUA, considerado um dos pais fundadores da nação. E o afresco na Rotunda do Capitólio foi realizado quase 65 anos depois da morte de Washington, num momento em que seu legado já era amplamente conhecido e reconhecido por todos. Já o American Sniper foi assassinado em 2013. O filme estréia em 2015: só alguém muito estúpido e irresponsável iria sugerir uma apoteose sendo que as implicações e consequências negativas da Guerra no Iraque são amplamente conhecidas por todos – a exceção de certos críticos, me parece.

Apoteose de Homero por Jean Auguste Dominique Ingres, 1827.
Apoteose de Homero por Jean Auguste Dominique Ingres, 1827.

Da mesma forma, no caso de Whiplash, há alguma consagração evidente numa apresentação importante e supostamente conclusiva para a qual o diretor do filme excluiu propositalmente os aplausos da platéia no final? Há realmente um posicionamento unilateral do diretor aqui ou uma “epokhé”, uma suspensão do juízo que faz da obra uma obra aberta, para usar o já antigo termo cunhado por Umberto Eco? Que tal fazermos um esforço para entender que existe uma diferença entre o tema do filme e como esse tema é tratado pelo diretor, o que inclui um grau de sutileza e uma série de pequenos detalhes que vão construindo o pensamento por trás da obra, sendo que muitas vezes, aliás, na maior parte das vezes, quando a obra é boa, esse pensamento normalmente não é algo dado de barato para o espectador como uma coisa, um objeto a ser lançado longe, para retomar a etimologia do termo, enfim, uma mercadoria enlatada que você pega no supermercado e leva para casa – nós, como espectadores, precisamos fazer um esforço próprio, precisamos reconstruir através dos diversos indícios que a obra fornece de modo discreto o que poderia ser uma posição do diretor sobre aquele tema, mas como qualquer obra, essa reconstrução é sempre limitada pelo processo de seleção dos indícios escolhidos, de forma que não há meta-narrativas possíveis sobre as obras, que sejam o resultado de um processo racional e objetivo de interpretação, mas apenas uma versão dentre outras possíveis, e isso significa, em suma, que a própria obra não pretende defender uma tese dicotômica, do tipo sim ou não, mas mostrar, pelo poder peculiar que a arte tem, que a realidade pode ser mais complicada, mais prenhe de nuanças, mais sutil e complexa do que sonham nossos olhares quase sempre redutores e preguiçosos. Uma obra de arte, como esses filmes mostram, é fruto de muitas decisões e pensamentos diferentes, que se somam sem necessariamente produzirem uma versão homogênea, simplista e final do tipo “o que eu quero dizer com esse filme é X=Y”. A consistência e a unidade dessas obras só são possíveis ao preço de não sacrificarem a sua polivalente e rica multiplicidade. Pois mesmo essa unidade é feita também de um sem número de decisões e pensamentos que não são exatamente conscientes ao artista, pois a obra não é nunca idêntica ontologicamente falando à criação de um suposto Deus onisciente, onipresente e onipotente. Desconfiai, portanto, de toda essa evidência e clareza acerca de um suposto discurso curto e grosso do artista, porque nesse caso, o curto e grosso é o olhar do espectador ou do “crítico”.

Apoteose de George Washington por Constantino Brumidi, 1865, na Rotunda do Capitólio em Washington, D.C.
Apoteose de George Washington por Constantino Brumidi, 1865, na Rotunda do Capitólio em Washington, D.C.

Quero deixar claro que nenhum dos três filmes aqui pensados têm natureza apologética como alguns estão pensando. Nem mesmo o Birdman: mesmo sendo um grande tributo à própria arte do cinema, ele consegue escapar do simplismo e da ingenuidade da abordagem apologética. Basta colher os elementos que os próprios filmes fornecem. O interessante é que esses 3 filmes tratam de uma mesma questão: a obsessão e a loucura por trás da luta por um ideal, e do quanto essa luta não apenas afeta aqueles que lutam, mas todo um conjunto de pessoas, conhecidas ou não. No caso do Whiplash e de Birdman, o contexto é a arte, sendo que Birdman é altamente metalinguístico, como eu não via desde o excelente Cópia Conforme do Abbas Kiarostami. Se Birdman está para o Cópia Conforme, Whiplash está para Cisne Negro do Darren Aronofsky. Obviamente que Birdman é muito mais complexo que o Whiplash, mas esse último não é um mero filme sobre a opressão e a violência do ensino, no caso, musical, nem mesmo é tese do diretor, como alguns “críticos” tentam apontar, sem prestar atenção ao filme, a defesa da atitude docente extremada do personagem Fletcher vivido pelo J.K. Simmons. O personagem vivido por ele é sem dúvida intenso demais, e isso leva algumas pessoas a achar que o filme é sobre ele, mas não é, tanto que o personagem dele concorre ao Oscar de Ator Coadjuvante, pois é isso que está designado no roteiro do filme. Fletcher é apenas o pretexto para o diretor tratar da atitude do jovem aspirante à grande músico. Mas não há nenhum indício no filme – como eu disse antes, onde estão os aplausos finais depois da última apresentação? – que nos permita considerar que o diretor tem uma opinião fechada e dogmática sobre esse tema. Mais uma vez, trata-se de apresentar certos elementos ao espectador sem necessariamente produzir um sentido fechado ou uma versão oficial sobre o que significa agir da forma como o rapaz age, porque se fizesse isso, o diretor chutaria a própria obra para escanteio, podendo trocá-la facilmente por uma declaração do tipo: “seja obsessivo, que os resultados surgirão.” Ora, isso é supor uma superficialidade monstro do diretor e da obra. Para quê subestimar um e outro se o próprio filme é muito mais complexo do que isso? Faz algum sentido pensar que o diretor está afirmando que vale a pena quebrar a cara num acidente de carro violento – do qual muita gente certamente não sobreviveria – apenas para realizar uma performance de duas músicas entremeadas por um solo fora de qualquer parâmetro de conjunto apenas para mostrar que você é um bom músico, sendo que o filme não apresenta nenhum indício dos desdobramentos da cena, deixando em aberto ao espectador que complete em sua própria mente os resultados possíveis de todo esse esforço obsessivo? Seria supor que um diretor que é capaz de realizar um filme muito bem feito formalmente, com ótimas tomadas e movimentos de câmara complexos que envolvem um sem número de parâmetros diversos não tenha nada na cabeça, não é mesmo? Mas, como eu disse, Whiplash não afirma nem que sim nem que não, e é esse o seu mérito, por fazer as pessoas pensarem. O filme trata das atitudes possíveis que podemos ter em função das situações que vivemos independentemente de nossa própria vontade. Não se trata, portanto, de um determinismo do tipo fez isso, essa é a consequência, mas uma reflexão aberta sobre o fato de que o que importa, realmente, não é aquilo que acontece conosco, mas o que fazemos diante disso. Nesse sentido, o filme se desloca entre a centralidade dada ao professor na primeira parte do filme, e a centralidade dada ao rapaz na segunda parte, para terminar em aberto, tal como os demais filmes (e esse é um dos seus maiores méritos), sem a glorificação que o aplauso não existente na última cena poderia trazer à atitude do rapaz ou ao “método” do professor, da mesma forma que o American Sniper termina com uma imagem que é a antítese da figura do herói contemporâneo a que Hollywood/Disney normalmente nos oferecem, ou seja, se há a figura do herói no filme, esse herói tem a mesma dimensão e problemática da figura do herói antigo, Épico, Lírico e Trágico, de Homero à Anacreonte, de Eurípides à Virgílio, longe, muito longe da consciência chapa branca daquele herói contemporâneo que não sofre, não se perde de si mesmo, não sofre as consequências dos próprios atos e vive feliz para sempre e, portanto, não se sustenta como personagem minimamente verossímil.

No caso do Birdman, a verossimilhança precisa ser compreendida no nível metafórico-metalinguístico. O filme também termina com uma cena aberta, a partir da qual o espectador é convidado a fazer a sua própria síntese. Nesse sentido, Birdman é um tremendo tributo à arte, do cinema e da dramaturgia – o teatro ai incluído, obviamente – e uma baita reflexão sobre a permeabilidade entre a arte e a vida, sobre a inexistência de fronteiras claras e distintas entre um registro e outro e de como, no seu fazer artístico, o artista, pensado como epítome do ser humano, está o tempo todo sendo confrontado pela experiência – que no fundo, é de todos nós – da inexistência de fronteiras claras entre o real e o não real, entre a razão e a loucura, entre o Ego, o Id e o Superego, entre o certo e o errado, entre o delírio e a alucinação, a fantasia e a imaginação, o desejo e o os constrangimentos do real, o espaço e o tempo dedicados ao trabalho e à família, e de como, por oferecer seu próprio corpo e sua mente como campos de experimentações para além das fronteiras socialmente aceitas como razoáveis, o artista acaba revelando para si e para os demais mais acerca da natureza da realidade do que sonharia a nossa vã filosofia, costumeiramente calcada no castelo de cartas que são nossas certezas cotidianas. Tudo isso não é revelado apenas pelo conteúdo do filme, mas também pela forma em que ele é filmado: a fabulosa continuidade do plano-sequência da câmera, que vai da primeira cena até quase o final do filme num verdadeiro tour de force espacialmente labiríntico, indica concretamente que as descontinuidades e as dicotomias não se sustentam quando encaradas sob uma perspectiva que é ao mesmo tempo mais profunda e mais elevada acerca do cosmos, da existência e da criação – artística, acima de tudo -, tal como nos oferecem as grandes mentes nos seus momentos de maior inspiração. Por isso, Birdman é um filme mais ousado formalmente que os outros dois, mas não deixa de colocar em questão as mesmas certezas fáceis sobre o nosso papel nesse planeta, sobre o peso e as dificuldades de cada decisão que precisamos tomar e todas as implicações que decorrem, para nós e para os demais, dessas nossas escolhas – tudo isso longe, muito longe das certezas inabaláveis dos “críticos” de plantão. Nem mesmo, como eu disse, Birdman pode ser considerado uma apologia à arte – um tributo sim, mas uma apologia não, porque o que mais é a cena final do filme senão o desejo de renúncia de tudo isso a que a arte supostamente aspira e proporciona? Nesse sentido, é um filme borgeano, repleto de caminhos que se bifurcam, sem a preocupação de encontrar um pouso derradeiro ou uma visão definitiva sobre si mesmo ao qual se apegar: daí a necessidade do voo ou, trocando em miúdos, para o bater asas, não há outra forma de aprendermos a não ser ir em busca do contato direto com as obras: assisti-las, enfim, independentemente do que os “críticos” dizem – e isso vale também, obviamente, para estas minhas palavras. Afinal, se nem Orfeu pôde, por que poderia eu?

“Um deus pode. Mas como erguer do sol,
na estreita lira, o canto de uma vida?
Sentir é dois; no beco sem saída
dos corações não há templos de Apolo.

Como ensinas, cantar não é a vaidade
de ir ao fim da meta cobiçada.
Cantar é ser. Aos deuses, quase nada.
Mas nós, quando é que somos? Em que idade
nos devolvem a terra e as estrelas?

Amar, jovem, é pouco, e ainda que doam
as palavras nos lábios, ao dizê-las,
esquece os teus cantares. Já não soam.
Cantar é mais. Cantar é um outro alento.
Ar para nada. Arfar em deus. Um vento.”

– Sonetos a Orfeu 1.III. de Rainer Maria Rilke – tradução de Augusto de Campos