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Professora ensina bailarinas cegas com método de contato e percepção corporal

A aula começa pontualmente às 14h30, com um grupo de jovens bailarinas clássicas prontas para iniciar a maratona de alongamentos. Aquecidas, começam a sequência de exercícios na barra, depois executam as baterias de saltos e giros. “Não, não. Repete!”, “vamos fazer mais uma vez”, “vocês estão um tempo atrasadas”, corrige a professora, em uma breve demonstração da exigência e da disciplina características do balé. Tudo transcorre como em uma aula tradicional se não fosse por um detalhe: a maioria das bailarinas é cega e aprendeu os passos pelo toque nas professoras.

Elas fazem parte dos 150 bailarinos da Associação Ballet de Cegos Fernanda Bianchini, localizada na Vila Mariana, zona sul da capital paulista. Deles, 60% têm deficiência visual, 30% têm deficiências motoras, auditivas ou intelectuais, e 10% não apresentam deficiências. “Aqui nós trabalhamos a inclusão às avessas. Temos até uma professora de balé cega, que é a única do país. Ela dá aula para crianças que enxergam e que não enxergam”, conta a diretora da associação, Fernanda Bianchini.

Na turma de nível intermediário, três das oito meninas não têm deficiência visual. Uma delas é Giovanna Basso, de 13 anos, que pratica a dança na associação há sete. Enturmada e ambientada, ela ajuda a organizar as filas e a posicionar as colegas na barra. “Uma vez, na escola, uma professora pediu que ela fizesse uma redação sobre algo diferente e eu sugeri que ela escrevesse sobre o balé e sobre suas amigas daqui. E ela me respondeu, muito naturalmente: ‘mas no que elas são diferentes?’”, conta a mãe da bailarina Célia Maria Basso. “Aqui ela aprende valores que eu levaria uma vida para passar, e depois aprendo com ela. É uma grande oportunidade de convivência.”

Todas as aulas são gratuitas. Os alunos, que vão dos 3 anos à terceira idade, não pagam sequer os figurinos das apresentações – e são muitas. As 12 bailarinas da companhia têm agenda cheia, incluídas apresentações em empresas e festivais em diversas cidades do país. O alto rendimento técnico do corpo de baile já as levou para festivais em Nova York e Londres, onde participaram do encerramento dos últimos Jogos Paralímpicos, em 2012.

“Eu já viajei para Salvador (BA) e Maceió (AL) para dançar. O balé clássico me deu oportunidade de fazer coisas que eu nem imaginava”, conta Gisele Aparecida Camillo, de 35 anos, na companhia desde 2010. “Meu sonho sempre foi ser professora de balé, mas ninguém me dava a possibilidade, por causa da minha deficiência, e aqui fui acolhida”, conta. De olho no seu objetivo, ela faz faculdade de Educação Física enquanto pratica a dança. “Hoje eu me sinto muito diferente do que era antes. Não tinha noção do que era uma diagonal, agora consigo visualizar e me apropriar o espaço.”

“Elas melhoram a expressividade, a autoestima, a postura e o equilibro. Se sobem no palco e dançam ballet, conseguem andar na rua com muito mais facilidade. O ballet trouxe uma outra vida para elas, na qual o impossível não existe”, conta Fernanda. “Queremos aplausos pela qualidade do trabalho que fazemos, não pelo fato de serem cegas. Por isso trabalhamos muito o sincronismo no palco. É fato que algumas aprendem mais rápido, outras demoram mais, mas isso é natural em qualquer escola. Independente de ter deficiência ou não, há alunas com mais ou menos facilidade para os giros, por exemplo, ou para o alongamento.”

As melhoras na qualidade de vida são claras para Ana Maria Marques, mãe da bailarina Cintia Marques, de 18 anos, frequentadora da na associação desde os 10. As duas se deslocam às segundas e quartas de Guaianases, no extremo leste da cidade, até a escola, em uma viagem de duas horas. “Ela se sente feliz aqui. Fez amigos e sua autoestima e sua postura melhoraram muito”, conta. Neste mês, Cintia se formou no ensino médio e vai iniciar, no ano que vem, um curso técnico de massoterapia.

O método
A técnica para o ensino de balé clássico é toda baseada no toque e na percepção corporal: os bailarinos tocam o corpo da professora para sentir o movimento e depois tentam repetir. Os saltos são reproduzidos com os alunos deitados no chão, de forma a entenderem qual o movimento das pernas no ar. “Quanto mais concreto é o ensinamento, mais fácil é de o deficiente visual aprender”, conta Fernanda.

Durante as apresentações, um dos desafios é a localização das alunas no palco. Por isso, os movimentos de deslocamento são trabalhados a partir de sons, como o estalar de dedos, batidas com os pés no chão e até pelo chamar do nome. “Treinamos isto desde o ensaio: se o som vem nesse sentido é para lá que você deve seguir”, conta Fernanda. “Uma aluna uma vez caiu do palco porque eu a orientava pedindo para ir para trás, no sentido da parte de trás do palco, ela seguiu para trás de onde estava. A partir daí começamos a passar as coordenadas para qual lado devem virar o corpo. Elas têm um sentido de localização bem diferente do vidente. Frente, atrás, direita, esquerda e diagonal podem ter sentidos muito diversos.”

Com os aprimoramentos, o método pioneiro de ensino de balé para cegos, desenvolvido por Fernanda há quase 20 anos, coleciona histórias de sucesso. Tanto que foi aprofundada e patenteada em sua tese de mestrado em Fisioterapia, em 2005. “Eu dou cursos gratuitos para professores, para que pessoas com deficiência de outras cidades também possam aprender”, conta. “Nunca quis fazer um trabalho só bonito para as pessoas verem. Minha ideia era buscar na ciência e na literatura as respostas para as coisas que acontecem na minha sala de aula.”

“Comecei quando tinha 15 anos, quando meus pais eram voluntários no Instituto de Cegos Padre Chico. Logo na primeira aula eu vi as meninas de calça e cabelo solto e falei que não era assim que se estudava. E elas: ‘mas como é balé?’ Então começaram a me tocar e a descobrir que tipo de roupa estava usando e como eu era. Aquilo foi muito lindo. Nesse momento percebi que precisava primeiro entrar no mundo delas para depois apresentar o meu”, conta. “Foi um dos maiores desafios da minha vida. Na época, nem minhas professoras acreditaram que isso seria possível, mas meus pais me incentivaram, dizendo que é daí que vêm as grandes lições. É um trabalho que me enriquece como ser humano a cada dia.” (RBA)

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