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Podemos, da Espanha, e outros movimentos podem renovar partidos políticos

A onda ‘Podemos’, nome de um novo partido político da Espanha, mas que representa mudanças em várias partes do mundo, é segundo Boaventura de Sousa Santos uma das grandes renovações na política da Europa, pós Guerra Fria.

Pablo Iglesias, do Podemos

Assim como ele, outros movimentos pelo mundo tentam romper com a lógica perversa da democracia representativa, em que os políticos são eleitos de 4 em 4 anos e acabam tendo uma autonomia tão grande que parecem donos da política, sem qualquer relação com seus eleitores, exceto a realização de obras para se reeleger eternamente. Essa situação, presente no mundo todo, é explícita no Brasil.
Veja abaixo, trecho do texto de Boaventura sobre esse novo movimento que tem colocado em cheque a democracia pouco representativa dos países europeus e das Américas, incluindo o Brasil.

A onda Podemos

Na Espanha, o novo partido Podemos constitui a maior inovação política na Europa desde o fim da Guerra Fria e, ao contrário do Syriza e do BE, nele não são visíveis traços da Guerra Fria.

Para entender Podemos, é preciso recuar ao Fórum Social Mundial, aos governos progressistas que emergiram na América Latina na década de 2000, aos movimentos sociais e aos processos constituintes que levaram esses governos ao poder, às experiências de democracia participativa, sobretudo em nível local, em muitas cidades latino-americanas a partir da experiência pioneira de Porto Alegre e, finalmente, à Primavera Árabe.

Em suma, Podemos é o resultado de uma aprendizagem a partir do Sul que permitiu canalizar criativamente a indignação nas ruas de Espanha. É um partido de tipo novo, um partido-movimento, ou melhor, um movimento-partido assente nas seguintes ideias: as pessoas não estão fartas da política, mas sim desta política; a esmagadora maioria dos cidadãos não se mobiliza politicamente nem sai à rua para se manifestar, mas está cheia de raiva em casa e simpatiza com quem se manifesta; o ativismo político é importante, mas a política tem de ser feita com a participação dos cidadãos; ser membro da classe política é algo sempre transitório e tal qualidade não permite que se ganhe mais que o salário médio do país; a internet permite formas de interação que não existiam antes; os membros eleitos para os parlamentos não inventam temas ou posições, veiculam os que provêm das discussões nas estruturas de base; a política partidária tem de ter rostos, mas não é feita de rostos; a transparência e a prestação de contas têm de ser totais; o partido é um serviço dos cidadãos para os cidadãos e por isso deve ser financiado por estes e não por empresas interessadas em capturar o Estado e esvaziar a democracia; ser de esquerda é um ponto de chegada e não um ponto de partida Como o caso do indiano AAP mostra, o impulso político que subjaz ao Podemos não é um fenômeno da Europa do Sul/América Latina. Pode aparecer sob outras formas noutros continentes e contextos.

Um pouco por toda a parte, 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, os cidadãos e as cidadãs que acreditaram na promessa da democracia, anunciada ao mundo como o fim da história, estão chegando à conclusão de que a democracia representativa liberal atingiu o seu grau zero, minada por dentro por forças antidemocráticas, velhas e novas oligarquias com poder econômico para capturar o sistema político e o Estado e os colocar a serviço dos seus interesses. Nunca como hoje se tornou tão evidente que vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas. A onda Podemos é uma metáfora para todas as iniciativas que tentam uma solução política progressista para o pântano em que nos encontramos, uma solução que não passe por rupturas políticas abruptas e potencialmente violentas.

Os EUA são neste momento um dos países do mundo onde o grau-zero da democracia é mais evidente. E certamente o país do mundo onde a retórica da governança democrática é mais grosseiramente desmentida pela realidade política plutocrática e cleptocrática. Depois que o Tribunal Supremo permitiu que as empresas financiassem os partidos e as campanhas como qualquer cidadão, e, portanto, anonimamente, a democracia recebeu o seu golpe final.

Em suma, o código genético do Podemos reside em aplicar à vida interna dos partidos a mesma ideia de complementaridade entre democracia participativa e democracia representativa que deve orientar a gestão do sistema político em geral. Convém salientar que Podemos é uma versão particularmente feliz e potencialmente mais eficaz de inovações políticas que têm surgido em diferentes partes do mundo, tendo por pano de fundo o inconformismo perante o esvaziamento da democracia representativa provocado pela corrupção e pela captura dos partidos de governo pelo capital. Na Itália, surgiu em 2009 o Movimento Cinco Estrelas, liderado por Beppe Grillo, com fortes críticas aos partidos políticos e defendendo práticas de democracia participativa. Teve um êxito eleitoral fulgurante, mas as suas posições radicais contra a política criam grande perplexidade quanto ao tipo de renovação política que propõe.

Em 2012, foi criado na Índia o Partido Aam Admi (partido do homem comum, conhecido pela sigla em inglês AAP). Este partido, de inspiração gandhiana e centrado na luta contra a corrupção e na democracia participativa, toma como impulso originário o fato de o homem comum (e a mulher comum, como acrescentaram as mulheres que se filiaram ao partido) não ser ouvido nem levado em conta pelos políticos instalados. Um ano depois da sua fundação tornou-se o segundo partido mais votado para a assembleia legislativa de Delhi.

Como o caso do indiano AAP mostra, o impulso político que subjaz ao Podemos não é um fenômeno da Europa do Sul/América Latina. Pode aparecer sob outras formas noutros continentes e contextos. Um pouco por toda a parte, 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, os cidadãos e as cidadãs que acreditaram na promessa da democracia, anunciada ao mundo como o fim da história, estão chegando à conclusão de que a democracia representativa liberal atingiu o seu grau zero, minada por dentro por forças antidemocráticas, velhas e novas oligarquias com poder econômico para capturar o sistema político e o Estado e os colocar a serviço dos seus interesses. Nunca como hoje se tornou tão evidente que vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas. A onda Podemos é uma metáfora para todas as iniciativas que tentam uma solução política progressista para o pântano em que nos encontramos, uma solução que não passe por rupturas políticas abruptas e potencialmente violentas.

Surpreendentemente, combinam essas leituras com a da Democracia na América de Alexis de Tocqueville e a sua apologia da democracia participativa e comunitária nos EUA das primeiras décadas do século XIX. É aí que vão buscar a inspiração para a refundação da democracia nos EUA, a partir da complementaridade intrínseca entre democracia representativa e democracia participativa. Sem o saberem, são portadores da energia política vital que a onda Podemos transporta. (Boaventura de Sousa Santos)

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