Para os geógrafos, isso mostra “o distanciamento dos governos, sobretudo o governo do estado de São Paulo, das necessidades reais, cotidianas e vitais da população”. E concluem: “a responsabilidade sobre suas origens é clara e o governo do estado de São Paulo deve ser cobrado por ela”. Veja abaixo texto completo, que é assinado por André Pasti, Prof. Dr. Fabio Tozi, Prof. Dr. Fabricio Gallo, Gustavo Teramatsu, Luciano Duarte, Prof. Dr. Márcio Cataia, Prof. Dr. Vicente Eudes Lemos Alves e Wagner Nabarro.
Crise hídrica, uma crise política
Em meio ao alastramento da crise hídrica no estado de São Paulo — cujos impactos vão sendo sentidos cada vez mais em nossa cidade e anunciam uma calamidade pública — cabe analisar suas razões e combater o entendimento, aparentemente dominante, de que a falta d’água na casa das pessoas tem origem natural. A crise hídrica é uma questão política, e não climática.
Há tempos, a organização do espaço em que vivemos não é mais “refém” das dinâmicas da natureza. Nosso território é organizado e usado pela sociedade, segundo suas intenções e seus projetos, superando percalços e dificuldades colocadas pela base natural originária. A vida de dezenas de milhões de pessoas na macrometrópole paulista (da qual fazem parte as regiões metropolitanas de Campinas e de São Paulo) somente é possível graças aos grandes sistemas técnicos e obras de engenharia, que, por sua vez, exigem manutenção constante para que não entrem em colapso. Como já dizia o geógrafo francês Hilderbert Isnard, na década de 1970, não há mais espaços naturais — todo o espaço terrestre é organizado pelo homem. Em grande medida, as pessoas moram, trabalham, alimentam-se e possuem (ou não) água devido ao planejamento e à política que certos grupos e agentes aplicam e impõem.
No caso da atual crise hídrica, esse entendimento é essencial: o que está em crise é o abastecimento de água “planejado” (de forma desastrosa) pelos governantes dos estados. A crise hídrica se deve às falhas na organização desse sistema de abastecimento, que sabíamos — nós e os governantes — estar em colapso há mais de dez anos. Culpar a falta de chuvas é uma fuga típica (já utilizada em 2001 para justificar o racionamento de energia elétrica, que só é possível graças ao imenso silêncio midiático em torno das responsabilidades do governador reeleito de nosso estado, Geraldo Alckmin (PSDB), e da empresa responsável pelo abastecimento de água do estado, a Companhia de Saneamento Básico (Sabesp).
A crise havia sido anunciada em diversas ocasiões, sem que as medidas necessárias tenham sido tomadas. Há dez anos, quando da renovação da outorga (Portaria DAEE 1213/2004) para a Sabesp continuar retirando água do Cantareira, foram exigidos alguns compromissos — como metas de tratamento de esgotos, redução da dependência do abastecimento em relação ao Sistema Cantareira e maior controle de perdas — que não foram priorizados, o que comprometeu ainda mais o sistema.
O Cantareira, que engloba um conjunto de reservatórios, estava sobrecarregado com o crescimento da demanda de água na macrometrópole paulista. A crise de abastecimento já era prevista. O conhecimento técnico reunido sobre os fenômenos naturais já é extenso o suficiente para a previsão de períodos de estiagem e de chuvas. Além disso, as perdas entre a captação e a chegada às caixas d’água são estimadas em até 50% para muitas cidades (nos dados autodeclarados pelas empresas são cerca de 32% para a Sabesp e 19% para a Sanasa). Sabe-se dessas perdas há tempos. Por que não houve investimentos e prioridade política?
Cabe ressaltar que a Sabesp, criada em 1973 para unir as empresas de água e esgoto do estado de São Paulo, é uma empresa de capital aberto desde 1994 e atualmente está listada na BM&FBovespa e na bolsa de Nova Iorque. Em 2012, a Sabesp alertou seus investidores, por meio de um relatório anual, dos riscos de falta d’água e comprometimento do abastecimento à população. Isso não se desdobrou, no entanto, em informação do Estado à população ou em ações de precaução, trazendo à tona o fato de a empresa estar mais direcionada aos resultados financeiros auferidos aos seus acionistas do que à sua atuação junto à população. Lembramos que o abastecimento de água não é um mero produto, da forma como a Sabesp o trata, mas sim um direito fundamental da população — dada a sua importância vital e social — e um fator produtivo imprescindível.
A procrastinação dos riscos de crise hídrica fez com que poucas ações fossem efetivadas. A Sabesp não investiu 37% do que era previsto em obras contra a crise entre 2008 e 2013. O problema se agravou pelo fato de o ápice da crise hídrica ter se dado em ano de eleições para o governo do estado. O negacionismo da questão pode ser observado na fala do governador e então candidato à reeleição, em meio a diversas interrupções no fornecimento de água: “Não falta água em São Paulo, não vai faltar água em São Paulo”. Todavia, o nível do sistema Cantareira chegou, na quarta-feira (22 de outubro) a apenas 3,2% de sua capacidade, incluindo o volume morto — reserva que, por questões de segurança hídrica, não deveria ser utilizada, uma vez que coloca em risco a recuperação do próprio sistema.
A contínua falta de investimentos em contenção de riscos e a progressiva expansão urbana sem planejamento adequado de infraestruturas de suporte, somadas à demora em informar a população e assumir o ônus da questão por razões eleitorais foram a receita da falta de água no estado de São Paulo e do comprometimento do abastecimento de qualidade para os próximos anos. É preciso compreender, desse modo, a crise hídrica como uma crise política, ou seja, o distanciamento dos governos, sobretudo o governo do estado de São Paulo, das necessidades reais, cotidianas e vitais da população. Ao que tudo indica, infelizmente caberá, mais uma vez, à própria população criar maneiras para sobreviver e contornar esta crise. Entretanto, a responsabilidade sobre suas origens é clara e o governo do estado de São Paulo deve ser cobrado por ela.
André Pasti, Prof. Dr. Fabio Tozi, Prof. Dr. Fabricio Gallo, Gustavo Teramatsu, Luciano Duarte, Prof. Dr. Márcio Cataia, Prof. Dr. Vicente Eudes Lemos Alves e Wagner Nabarro são geógrafos da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) – Seção Campinas