“Quando eu cheguei lá, eu fui recebida por um médico vestido de açougueiro, com um avental branco, todo ensanguentado, e com instrumentos claramente artesanais, rudimentares. […] Eu comecei a ter uma crise de vômito, enquanto o médico me tortura dizendo que, se eu não tivesse procurado ele, eu não estaria vivendo aquilo”. O depoimento, registrado no curta Clandestinas, de Fádhia Salomão (veja documentário no final do texto), é de uma mulher que teve que buscar uma clínica clandestina para interromper a gravidez.

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Cena de Clandestinas

O destino dela foi diferente do da auxiliar administrativa Jandira Magdalena dos Santos, 27 anos, encontrada morta depois de ter desaparecido junto a outras mulheres, no dia 26 de agosto, quando partiram em direção a uma clínica clandestina de aborto, no Rio de Janeiro. No vídeo, a jovem conta que, com o apoio do namorado, saiu da clínica clandestina e procurou assistência em outro hospital, de onde saiu sadia, após ter feito o procedimento. Não sem antes escutar a enfermeira plantonista afirmar que ela deveria dizer que sofreu um aborto espontâneo, pois do contrário o médico “ia me deixar morrer”.

Estabelecido como crime pelo Código Penal, o aborto é permitido no Brasil em apenas três situações: quando não há outra forma de salvar a vida da gestante; quando a gravidez é decorrente de estupro e a mulher ou representante legal dela opta por interromper a gravidez e em casos de diagnóstico de anencefalia. Nesse caso, incluído após julgamento do Supremo Tribunal Federal em 2012, fala-se em antecipação terapêutica do parto.

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Em qualquer dessas condições, a mulher pode procurar o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem 65 unidades aptas a interromperem a gravidez. Nesses casos, elas devem ser acompanhadas por uma equipe multidisciplinar, de modo que seja garantida assistência médica, social e psicológica. Em 2013, segundo o Ministério da Saúde, foram registrados 1.523 casos de aborto legal. Estima-se, contudo, que o número de interrupções praticadas no país seja bem maior.

Segundo pesquisa do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), da Universidade de Brasília (UnB), mais de uma em cada cinco mulheres alfabetizadas que possuem entre 18 e 39 anos já praticaram pelo menos um aborto, ao longo da vida. Cerca de metade delas teve que ser internada por conta de complicações, como perfuração do útero. A prática é mais comum entre mulheres com menor escolaridade (23%), enquanto o percentual das que já concluíram o ensino médio e é 12%.

Realizada em 2010, a Pesquisa Nacional de Abortos utilizou a técnica de amostragem para chegar a esses números, afinal como muitos casos são feitos em clínicas clandestinas, não há como obter dado exato, mas muitas pesquisas tendam a dimensionar essa ocorrência. No documento Aborto e Saúde Pública no Brasil, de 2009, o Ministério da Saúde destacou estimativa de que 1.054.242 abortos foram induzidos em 2005. Já o Centro Feminista de Estudo e Assessoria (Cfemea) aponta que cerca de 1 milhão de brasileiras submetem-se a abortos clandestinos todos os anos.

O Ministério da Saúde afirma que o número de óbitos de mulheres atribuído ao aborto passou de 3ª para 5ª causa de mortalidade materna de 1990 a 2012, queda que credita “à ampliação da rede de serviços à saúde integral da mulher, ação efetuada pelo Ministério da Saúde em conjunto com as secretarias estaduais e municipais de saúde”.

Apesar da dificuldade de acesso a esses dados, o Instituto Anis conclui que o aborto deve ser prioridade na agenda de saúde pública nacional. O mesmo posicionamento é defendido pela Anistia Internacional, para quem o tema deve ser tratado como uma questão de saúde pública e direitos humanos e não na esfera criminal.

A opinião é compartilhada pela assessora do Cfemea, Fernanda Saboia. Para ela, o debate sobre o tema no Brasil precisa ser feito à luz da saúde pública e dos direitos das mulheres. “A discussão sobre o aborto não tem o intuito de mudar a opinião individual de cada um, mas de mudar a legislação, para que as pessoas que fazem aborto não sejam criminalizadas ou submetidas a uma abordagem em clínicas clandestinas”, afirma.

Fernanda aponta o abandono dos companheiros, a falta de condições financeiras ou de preparação para ter um filho e a falha de métodos contraceptivos como principais situações que levam a essa prática. Por isso, para ela, manter a situação como está significa “fechar os olhos para uma situação que já é comum e que mata sobretudo as mulheres negras e pobres, porque as mulheres da classe média e da classe alta fazem o aborto em clínicas clandestinas em ótimas condições”. De acordo com o Cfemea, muitas clínicas chegam a cobrar pelo menos R$ 4 mil pelo procedimento.

Essa diferença foi diagnosticada também pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No relatórioAbortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde, a organização ressalta que “nos países onde o aborto induzido legal está sumamente restrito ou não está disponível, na maioria das vezes o aborto seguro se torna um privilégio dos ricos, e as mulheres de baixa renda são mais suscetíveis a procurar métodos inseguros, que provocam a morte e morbidades, gerando responsabilidade social e financeira para o sistema de saúde público”.

A OMS estima que, a cada ano, são feitos 22 milhões de abortos em condições inseguras, levando à morte cerca de 47 mil mulheres, além de causar disfunções físicas e mentais em outras 5 milhões. Já “nos locais com poucas restrições ao acesso a abortamento seguro, a taxa de mortes e doenças cai drasticamente”, afirma a organização, que constatou diminuição no número de abortos realizados nesses países.

Na avaliação da coordenadora da organização Católicas pelo Direito de Decidir, Rosângela Talib, isso ocorre porque, em países em que o aborto é legalizado, as mulheres buscam o sistema de saúde e lá recebem informações. Há “maior possibilidade dessas mulheres saírem do serviço de saúde com métodos contraceptivos e também de terem maior nível de informação sobre sua saúde reprodutiva”, afirma.

Diante do que considera ausência do Estado em relação à educação sexual e ao planejamento familiar, Rosângela avalia que “nem a interdição legal, com a criminalização, nem a interdição religiosa, que coloca como pecado, têm impedido que as mulheres realizem o aborto. A proibição tem sido inócua como possibilidade de você diminuir a prática e isso tem levado a uma série de problemas de saúde pública”.

Religiosas, as integrantes dessa organização defendem que esse tema deve deixar de ser um tabu na sociedade em geral e também na Igreja. “A gente teve uma revolução de costumes, não dá para a gente defender os mesmos princípios, como se nada tivesse mudado. O que a gente faz é chamar a Igreja para dialogar com a sociedade”, defende Rosângela.

Médica neonatologista, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará e integrante do Movimento Nacional da Cidadania em Defesa da Vida, Eliane Oliveira acredita que a legalização geraria mais abortos, mais lucro para as clínicas e empresas farmacêuticas. Além disso, “atacaria a consequência e não a causa”, afirma.

Para ela, os abortos feitos no Brasil devem ser combatidos com políticas preventivas. “Saúde pública é fazer planejamento familiar. E planejamento familiar é muito mais que controlar a natalidade. O que a gente precisa é de uma saúde para a mulher com responsabilidade. É de educação e informação”, defende. (Agência Brasil)