Por Marcelo Hilsdorf Marotta

Acompanhei desde ontem na ocasião do jogo de abertura da Copa de 2014 do Brasil contra a Croácia três posições diferentes em relação ao xingamento que nossa presidenta recebeu dos torcedores no próprio estádio. Resumo aqui as três posições, para no final propor uma quarta posição, que me parece mais justa e satisfatória:

A) Em primeiro lugar, a posição dos que xingaram a presidenta, posição esta que não está separada do fato dos xingamentos terem saído da área VIP como mostraram alguns comentadores, que corresponde obviamente à posição daqueles oriundos das classes sócio-econômicas A e B ou, em alguns casos, da classe AAA que concentram boa parte do eleitorado que não apenas rejeita a Dilma como presidenta mas que vota nos candidatos do PSDB como o Aécio e o Alckmin. Isso significa também a adoção de uma posição política conservadora, que rejeita claramente as políticas sociais introduzidas de forma sistemática pelo PT no Governo Federal, que tanto tem contribuído para o avanço e amadurecimento da democracia no Brasil. De outro lado, isso significa dizer que, ademais, a rejeição boca suja da presidenta por essas pessoas não se deve ao fato dela ter contribuído de forma sistemática, seja por omissão ou ordem direta dada aos seus subordinados, como é o caso do Ministério da Justiça, do Ministério dos Direitos Humanos, do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério da Agricultura e Reforma Agrária, do Ministério das Minas e Energia, etc, que tem contribuído notoriamente para a política de extermínio das populações indígenas e desrespeito aos Direitos Humanos, para a política de energia a mais equivocada possível, para a política do meio ambiente que já passou pelo desastre da Reforma do Código Florestal e que vem se somando à continuidade do modelo colonial como matriz produtiva nacional, que privilegia as forças mais atrasadas que existem em nossa sociedade, como o latifúndio, a monocultura exportadora e a concentração absurda da terra em mãos cada vez menos numerosas, enfim, para essa vertente fundamental do nosso futuro como Planeta que representa a síntese – porque não podem ser pensados uns sem os outros – dos saberes e formas de vida das populações tradicionais que lutam a séculos para que a sociedade que hoje se globalizou mais nos seus problemas do que nas suas soluções compreenda a importância da valorização e preservação da Natureza como o único eixo civilizatório capaz de evitar que todas as catástrofes que os especialistas já sabem ser inevitáveis por conta do modelo de gestão equivocado dessa mesma Natureza se torne um pouco menos catastrófico para nós – a espécie que é tanto responsável diretamente pelas mudança globais no ecossistema terrestre como aquela que mais sofrerá suas consequências, porque, afinal, a própria natureza tem seus próprios meios de se superar e de se adaptar a si mesma, enquanto o mesmo não é nem um pouco verdade para nós, que dependemos obsessivamente de estilos de vida e de valores que julgamos imutáveis, ou seja, estamos cada vez mais descolados dessa Natureza, já que o que a define acima de tudo é a sua maleabilidade e o seu poder de adaptação;

B) Em segundo lugar, a posição dos que primeiro reagiram ao xingamento, alimentados especialmente pelo sentimento de inadequação e falta de decoro – portanto, falta de educação – desses que, no fundo, são os que deveriam ter alguma educação, pois são os que foram beneficiados com seus privilégios de classe a ter uma formação em boas escolas e universidades ao redor do mundo. Nesse conjunto de pessoas que demonstram essa segunda posição, encontram-se desde os governistas cegos que chegam a dizer que nenhum protesto ocorrido nas ruas visa criticar a presidenta Dilma e o PT até aqueles que são dotados de um senso crítico mais apurado e conseguem separar a positividade das políticas sociais aludidas acima das políticas evidentemente anti-sociais (com o social ai utilizado no seu sentido forte, isto é, como o conjunto de elementos, forças e configurações que estruturam numa mesma realidade o mundo físico, o biológico, o ambiental, o cultural, o humano e o espiritual) desse mesmo governo, mas entre uma constatação e outra, preferem se colocar numa posição que não deixa de ser de certa forma fruto da vaidade e do convencionalismo, que é a de encararem a si mesmos como aqueles que tem verdadeiramente alguma educação, em detrimento daqueles primeiros cuja educação é apenas aparente. Por isso, parecem condenar metodologicamente a falta de decoro dentro do estádio ao mesmo tempo – isto é, bem entendido, no mesmo momento em que condenam a falta de decoro – em que silenciam sobre a natureza anti-social da ação governista fora dele, quando na verdade uma ação não existe separada da outra;

C) Por fim, em terceiro lugar, a posição mais difícil de articular, porque mais sofisticada na sua crítica e mais atenta à nervura do real das três. Trata-se da posição daqueles que estão mais atentos aos limites do tolerável e constatam que esses limites já foram rompidos de modo brutal e violento pelo Estado há muito tempo, sem que tivéssemos tido um interlúdio democrático mais evidente, já que o Estado contemporâneo tem se estruturado como Estado de Exceção e não como Estado de Direitos, onde o que vale é a consolidação de um modelo de governo cada vez mais permeado pelo aparato policial e militar, dos mais altos aos mais baixos escalões. Frente a essa realidade onde a violência é um estado permanente e cotidiano e o poder do diálogo e da palavra frente a isso de modo geral se reduz, pois mesmo o uso da palavra está sujeito a corroborar o macro-fascismo do Estado em forma de micro-fascismos do discurso e das relações interpessoais, cujo potencial destrutivo é imenso, há nessa posição uma orientação sensivelmente anarquista, cujo mérito maior é a acuidade, riqueza e vivacidade do pensamento e uma certa certeza de que o real seja aquilo que te bate diretamente na cara, ao modo de um Clube da Luta poético. Por isso, estão mais atentos para compreender o potencial transformador que um xingamento possui, já que não estão presos a convenções e poças d’água do discurso e, portanto, são mais honestos consigo mesmos e com os demais ao deixar claro que um xingamento não só não chega aos pés das atitudes de baixo calão que o Estado sujeita a população todos os dias e de formas sistemáticas como entende que decoro em relação aos governantes que assim praticam seus podres poderes é mais ou menos equivalente ao gesto ritual praticado na Antiguidade, no leste da Ásia Menor e no Oriente Médio, da Proskynesis (do prostrar-se diante de uma pessoa de status mais elevado para fazer-lhe o cumprimento e declarar-lhe submissão) visto segundo a perspectiva dos gregos antigos, para quem o gesto era o oposto do que o decoro para estes últimos esperava de um guerreiro dotado de excelência.

Gesto ritual da Proskynesis, praticado pelos povos do Leste na Antiguidade e visto pelos Gregos antigos como indecoroso e inaceitável. Nesse baixo-relevo do Museu Britânico de Londres que data de 825 a.C., vemos o Rei Jeú de Israel prestando homenagem ao Rei Salmanacer III dos Assírios.
Gesto ritual da Proskynesis, praticado pelos povos do Leste na Antiguidade e visto pelos Gregos antigos como indecoroso e inaceitável. Nesse baixo-relevo do Museu Britânico de Londres que data de 825 a.C., vemos o Rei Jeú de Israel prestando homenagem ao Rei Salmanacer III dos Assírios.

 

Pois bem, diante das três posições acima não procurei esconder minhas simpatias. Sou, sempre fui e sempre serei boca suja, porque fiz escola com a Dercy Gonçalves nas incontáveis noites em que espiava escondido as sessões de pornochanchada na TV durante a Ditadura. Como ela, acredito piamente – vejam, piamente! – que palavrão é o que os canalhas fazem com suas ações em detrimento do povo humilde, e não uma frase ou outra de efeito. Quando o iraquiano jogou a sapatada na cara de George W. Bush numa entrevista coletiva por ele lhe ter tomado e destruído o seu país, aquilo foi um gesto deselegante dentro dos cânones do chá das cinco entre as estrelas, mas jamais um gesto destituído de justiça, eloquência e sentido. Se estamos dispostos a enfrentar o desafio de interpretar a realidade – essa existência assustadora que grunhe de horror na nossa frente como uma criatura incompreensível de H. P. Lovecraft – é necessário que saibamos de antemão que o que nos espera não é algo já tabulado e adequado às mentes passivas que apenas tiram esquemas pré-fabricados da geladeira e os recolocam no tupperware do discurso para esquentar e servir – é necessário, acima de tudo, saber coletar, caçar e pescar, enfim, enfrentar a natureza selvagem no que ela tem de mais característico, isto é, sua imponderabilidade, imprevisibilidade e absoluta superioridade em relação a nós: por mais que nos esforcemos por alcança-la, ela está sempre à frente como a Tartaruga em relação à Aquiles, para lembrar o famoso paradoxo de Zenão. Por isso, para fazer jus a essa mesma complexidade, acho um erro não apenas político como de visão do real desconsiderar os elementos fundamentais que constituem esse discurso, pois, afinal, os detalhes fazem toda a diferença. Assim, não posso passar por cima, num discurso voltado para um “a quem se fala” específico, através de um outro “o que se diz” particular, mas devo considerar que esses dois elementos – no caso, traduzo: a presidenta e o xingamento – adquirem uma dimensão completamente diversa diante do outro elemento fundamental que é o “quem fala”. Com isso, todo o discurso se resignifica, mas não porque se trata de um xingamento – como se o problema fosse apenas o que se fala e para quem se fala -, mas porque na síntese dos três elementos, esse discurso como um todo perde força e credibilidade. Por isso, quero deixar claro: o problema não é a falta de decoro do xingamento, pois a noção de decoro é tão dependente das forças particulares que operam dentro do campo específico a que chamamos de contexto como qualquer outra coisa, e não é um valor absoluto cujas regras de funcionamento são imutáveis e universais. Aliás, é justamente por insistir nessa modalidade universal e imutável de valores como o decoro que o Ocidente e agora o mundo globalizado, isto é, a grande maioria das pessoas verdadeira ou falsamente educadas continua ignorando o potencial transformador desses mesmos valores. Eles são oriundos tanto das civilizações clássicas como é caso do decoro, como das civilizações tradicionais, no caso, ameríndias, como é o caso do perspectivismo, e podem transcender fronteiras epistemológicas sendo não só apropriados – com um grifo duplo nessa palavra de modo a dar conta do seu duplo sentido, que não é outra coisa, dito de forma sintética, que a capacidade de inserção, segundo as regras nativas do decoro, de um elemento estrangeiro no contexto nativo – como desejados como potências capazes de rearticular os problemas em soluções que ainda não conhecemos. Pois antes de esperar alguma novidade do ponto de vista dos candidatos de uma eleição – não é, afinal, isso que está em jogo aqui? -, campo que tem sido tão marcado pelo convencionalismo e o baixo calão, é necessário abrir os olhos para compreender pelo pensamento as nuanças do real, pois é do solo dessas nuanças que brotará a diferença.

Calvin por Bill Waterson
Calvin por Bill Waterson