Por Marcelo Hilsdorf Marotta

Parece que algumas pessoas estão com uma certa dificuldade de entender o gesto do Daniel Alves, jogador do Barcelona, de comer a banana lançada para ele por um torcedor como gesto de ódio deste último ao comparar o primeiro aos macacos.As pessoas estão dizendo: o gesto do agressor foi de racismo, e não podemos ficar indiferentes a ele, pois o racismo é coisa séria e merece receber tratamento adequado. Penso que nada disso está errado, mas o problema aqui não reside na incompreensão do gesto racista do agressor, mas na incompreensão da resposta do Daniel.

Imagem de Alexandre Beck
Armandinho, Tirinha de Alexandre Beck

O que significa essa resposta? Significa que ele abaixou a cabeça e aceitou a ofensa? De modo algum. Se ele tivesse feito isso, a reação mais comum nesse caso seria xingar o torcedor racista, ou seja, devolver-lhe o ódio. O nó górdio da questão reside no conceito de Justiça envolvido no caso. Que tipo de justiça é essa que devolve ódio com ódio? Ora, nada mais do que a Lei do Talião do Código de Hammurabi: “olho por olho, dente por dente”. Poderíamos dizer: mas a resposta correta não é responder no mesmo nível que o do agressor. Correto, mas que tipo de superação da lógica agressiva existe quando apenas diminuímos a equivalência entre o delito e a pena? Podemos exigir que o torcedor seja punido legalmente pelo gesto racista, um crime de ódio contra a pessoa, tal como definido pelas leis brasileiras. É esse o sentido da Justiça, segundo o entendimento ordinário. Não que isso seja menos importante. O torcedor até pode ser identificado pelas autoridades espanholas e punido conforme as leis. Mas o que significaria isso? Significa que no próximo jogo, algum outro torcedor lançaria mais uma banana como gesto de ódio racista. Por que? Porque a Justiça ordinária não inibe que o crime volte a ocorrer, mesmo punindo de forma adequada, segundo os parâmetros da lei, o agressor racista. E é ai que o gesto irreverente do Daniel Alves entra.

Enquanto confiar apenas nos trâmites legais põe fim apenas de modo muito limitado ao gesto de ódio racista, o contra-gesto de Daniel recorre a uma outra concepção de Justiça que não é mais a Justiça terrena, mas uma Justiça que eu vou chamar de espiritual, que resolve o problema da agressão em um nível diverso do usual.Mais uma vez, o que significa o gesto do Daniel Alves? Significa que, ao ser chamado de macaco, dentro de um campo semântico que iguala os macacos a uma espécie inferior aos humanos, Daniel Alves respondeu, dizendo que, se ser humano é ser racista e odiar dessa forma, ele prefere estar do lado dos macacos, pois estes não são destrutivos e negativos como o tipo de “humano” que jogou a banana. Ao jogar a banana, o agressor pensou, equivocadamente, do alto de sua presunção arrogante, estar dizendo: eu sou superior a você. O que faz o gesto de Daniel Alves é subverter o campo semântico onde essa identificação entre jogar a banana e ser superior é estabelecida, de forma que ele desconstrói o gesto do agressor, mostrando, ao comer a banana, que não é porque ele come uma banana que ele se torna inferior ao outro. A banana, para o agressor, estava carregada de uma conotação de inferioridade, da mesmíssima forma como certas pessoas que não saíram da quinta-série enxergam homofobicamente um gesto sexual nos colegas que comem uma banana na sua frente. Ora, nada mais definitivo para desfazer essas conotações do que o ridículo que o torcedor agressor passa ao perceber que grande parte do mundo riu dele quando desmascarado pelo gesto antropofágico do Daniel Alves. Ele comeu sim a banana, mas esse comer não é um comer qualquer, um comer fálico, um comer inferior, mas um comer para desfazer, desconstruir o dado e devolvê-lo ao mundo num outro patamar. O que foi digerido? O ódio agressor.

A resposta de Daniel subverte a lógica de responder ao ódio com ódio, ao oferecer como resposta o bom humor, que redefine os papéis sem ofender o outro. Não há nada mais sério do que o bom-humor. Porque agora, diante do desmascaramento e da ridicularização do gesto do agressor, quantos serão capazes de arriscar a própria reputação usando o mesmo gesto agressivo daqui para frente? Assim, Daniel Alves colocou em marcha, tão rápida e naturalmente como só grandes jogadores sabem fazer, um drible na expectativa de que a Justiça terrena dê conta de resolver um problema que todos nós sabemos que ela não vai resolver, não, ao menos, sozinha. Ao recorrer ao gesto espiritualizado e bem humorado, que demonstra acima de tudo que ele tem muito mais auto-estima do que o agressor, que precisa rebaixar os outros para se sentir alguém, ele abriu a possibilidade de que a diferença se instale nesse campo semântico, mudando as regras do jogo. Como esperar algo mais profundo e efetivo contra os gestos de ódio a que estamos infelizmente acostumados diariamente, do que isso? A Antropofagia, o gesto canibal de desfazer o semelhante ao comê-lo, nada mais é do que deglutir o mesmo para obter o diferente. Ao digerir o gesto costumeiro do racismo, Daniel Alves devolve não só ao agressor pontual mas a toda torcida mundial o questionamento sobre as condições de possibilidade do ódio racista, pondo em cheque o sentido do gesto agressor. Se o gesto agressor perde o sentido diante da opinião pública, que outro tipo de Justiça poderíamos esperar como ideal? O povo não é bobo, ele sabe reconhecer onde estão as grandes jogadas.

P.S.: Agora a tarde surgiu a notícia de que uma agência de publicidade estava por trás de algumas reações de “apoio” ao gesto do Daniel Alves, especialmente da parte de pessoas como o Luciano Huck, personalidades que se apropriaram do gesto revolucionário do jogador para faturar algum bom dinheiro em cima. Ora, o que esses oportunistas fazem não é nada mais do que transformar o diferente em mesmice, ou seja, exatamente o oposto do gesto antropofágico que transforma o mesmo em diferença, tal como tentei mostrar no meu texto acima. Onde está o problema aqui? O problema aqui está em se surpreender com isso, porque isso é o que os representantes do Capital sempre fizeram e sempre vão fazer, afinal, nada mais patético do que a presunção do vencedor de continuar eternamente acima da carne seca, afinal, como dizia o grego Heráclito, tudo corre… Mais sensato seria todo aquele que pretende sustentar uma posição a favor da diferença que compreendesse de uma vez por todas que a excelência, como dizia um outro grego, Aristóteles, não é um gesto isolado, mas um hábito continuo que se atualiza com o transcorrer do tempo, o que significa concretamente que o gesto oportunista do capitalista não desfaz a potência criadora do gesto antropofágico de Daniel Alves; quem a desfaz é todo aquele que se contenta com o gesto isolado ao invés de atualizar a práxis da diferença com a própria práxis da diferença.