Por Marcelo Hilsdorf Marotta

Peço a licença e paciência dos leitores para acrescentar mais algumas palavras que precisam ser ditas sobre a polêmica do gesto do jogador Daniel Alves do Barcelona, que me parece não ficaram claras para a maioria das pessoas. Para os que estão chegando agora aqui, nesse texto eu dou continuidade às reflexões iniciadas no meu outro texto aqui no Carta Campinas, intitulado O Gesto Antropofágico de Daniel Alves. Seria legal que os que não leram aquele texto o fizessem antes de ler esse.

A imagem mostra Edith Margaret Garrud (1872–1971), uma das primeiras instrutoras ocidentais do Jiu-Jitsu, resistindo bravamente à prisão ao lutar pelo direito das mulheres de votar. Gravura de Arthur Wallis Mills, publicado originalmente em 1910 na revista Punch e em The Wanganui Chronicle.
A imagem mostra Edith Margaret Garrud (1872–1971), uma das primeiras instrutoras ocidentais do Jiu-Jitsu, resistindo bravamente à prisão ao lutar pelo direito das mulheres de votar. Gravura de Arthur Wallis Mills, publicado originalmente em 1910 na revista Punch e em The Wanganui Chronicle.

Em primeiro lugar, acho estranho as pessoas acharem que o Neymar, um jogador que é quase mais conhecido pelas propagandas que faz do que pela bola que joga, iria agir de modo diferente, mesmo tendo sido ele mesmo vítima do racismo em condições idênticas as do Daniel Alves. O gesto do Neymar nessa história é o que os teóricos sociais conhecem pelo nome de Alienação, isto é, a incapacidade do indivíduo de lidar conscientemente com a opressão a qual ele é sujeito, negando-lhe potência e implicações. Como dizia o geógrafo Milton Santos, “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”. O Neymar não entendeu a potência do gesto do seu colega Daniel Alves. Ele apenas viu uma oportunidade para se dar bem na história, lucrando em cima, junto com o Luciano Huck. Com isso, ele se distingue do Daniel Alves, ao assumir como sua antes a camisa do capitalista do que a compreensão da potência do gesto do colega.

Dito isso, convém reforçar mais uma vez o lugar preciso dessa potência em cada um dos gestos, tanto no gesto de agressão racista quanto do contra-gesto do jogador do Barcelona que o elimina: em ambos os casos, trata-se de ações simbólicas que, como toda ação simbólica, só tem eficácia dentro de um campo simbólico que inclui não apenas o gesto em si, expressão formal que é inerte de significado fora de seu contexto específico, mas também a crença do agressor de que seu gesto agrida o outro e a crença do agredido de que aquele gesto o agride, ai incluídos, é claro, toda a comunidade internacional que acompanha o evento gestual e o investe de sentido. Assim, o que contrapõe o gesto agressor ao contra-gesto de Daniel Alves é que o primeiro reforça a sua eficácia simbólica pela crença dessa comunidade simbólica de que o gesto seja ofensivo. É ai que falha a compreensão de muitas pessoas que lutam ativamente contra o racismo quando criam hashtags do tipo #nãosomosmacacos, pois não há negação possível que faça sentido independentemente da existência logicamente anterior da afirmação que essa negação quer negar. Por isso, ao protestar contra o uso sem dúvida oportunista e sujo da hashtag #somostodosmacacos criada para fazer gente riquíssima ficar mais rica, na prática o resultado concreto é a confirmação para o agressor e a comunidade internacional de que seu gesto de jogar a banana tem eficácia simbólica, isto é, que o gesto tem de fato o poder de agredir o outro. Ora, tudo o que todo agressor mais deseja é confirmar que a sua agressão de fato agride!

De outro lado, o poder do contra-gesto de comer prosaicamente a banana lançada reside na sua capacidade de desinvestir o gesto agressivo de seu poder agressor, fazendo com que o jogar a banana se desassocie de quaisquer conotações ulteriores que identificariam o agressor com um ser superior e o agredido com um macaco ou qualquer outra coisa do gênero. O Daniel Alves comendo a banana ali era, para o Daniel Alves e para aqueles que souberam entender a potência do seu gesto, apenas o Daniel Alves comendo uma banana. Como dizia o Freud, há contextos em que um cachimbo é apenas um cachimbo e não um órgão fálico que o fumante colocaria na boca. O que Daniel Alves fez foi, portanto, algo bem conhecido dos praticantes das diversas modalidades históricas do Jujitsu: usar a força do inimigo contra ele mesmo, mudando o sentido da energia do gesto: de agressivo para ridículo, passando pela energia neutra, indiferente. Para entender a dimensão contida nesse simples gesto soberano do Daniel Alves, é preciso que o espectador desvincule-se das respostas tradicionais do Ego, que visam usualmente preservar a honra. Foi isso o que o jogador fez.

Nesse jogo de superações, parte fundamental do que significa ser humano reside na capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. Eu não sou negro, mas sou capaz de compreender, como sujeito branco que também é vitimado pelo preconceito em outras esferas (pelo fato, por exemplo, de ser gordo), a posição que muitas pessoas negras tomam diante dessa questão, pois para eles a violência, o preconceito e o ódio sofrido na pele talvez sejam muito mais cotidianos do que para mim. Contudo, se a empatia me permite compreender a resposta de muitos à essa questão quando protestam com a hashtag #nãosomosmacacos, isso não significa que eu concorde em não ver um sentido potente no gesto do Daniel Alves. O problema não está nos macacos, que são criaturas fantásticas e tão providos de riqueza e diversidade interna como os seres humanos, mas em acreditar que uma coisa massificante e redutora como uma hashtag, que transforma as nuanças de sentido dos gestos simbólicos potentes em bandeiras de guerra seja em alguma medida representante de algo diverso do que a lógica opressora e alienante do Capital.

Por isso, digo que sou macaco, sou gibão, sou mico-leão, sou orangotango, sou babuíno, sou rato, sou galinha, sou porco, sou elefante, sou veado, sou urso, sou anta, sou burro, sou urubu, sou gavião, sou abutre, sou hiena, sou ave de rapina, sou formiga, sou tarântula, sou cachorro, sou avestruz, sou papagaio, sou zebra, sou paca, sou serpente,  sou maritaca, sou lacraia, sou mula sem cabeça, sou bicho-papão, górgona e assombração, pois tenho certeza que existem tribos africanas que tem no macaco um de seus totens sagrados. O mesmo vale para os demais bichos, desse e dos outros mundos. Não é sinal de rebaixamento ou submissão assumi-los como parte de si: as sociedades tradicionais bem o sabem! Não adianta querer combater o racismo invocando um lugar mesmo que privilegiado dentro do modo ocidental de ser, em meio a tanto especismo e orgulho tolo, porque esse modo é por definição racista, excludente, arrogante e opressor, o que significa concretamente alienar-se em tão pouca ou rasa humanidade para que o ser humano entre em extinção, levando consigo uma infinidade de outras espécies, coisa que espécie nenhuma jamais fez. Antes bicho potente do que gente escrota, porque a solução desse impasse cultural exige uma superação de si que não é nem um pouco banal.