A greve dos caminhoneiros em sintonia com o locaute de empresas de transporte neste maio de 2018 expôs a distância que existe entre a esquerda brasileira e os trabalhadores autônomos. A verdade é que esquerda brasileira negligenciou os autônomos e nunca teve um projeto consistente para essa classe social.

Apegada às conquistas da CLT e da simbologia da carteira assinada, a esquerda brasileira sempre pensou em projeto político que garantisse os direitos dos empregados (mas tinham que ser empregado) e, claro, dos desempregados e excluído. Ou seja, aqueles que deveriam ser empregados e incluídos. Os autônomos ficaram esquecidos. Talvez porque em um país de tanta miséria e desigualdade, os autônomos estariam em um situação privilegiada, mas a questão é mais complexa.

Longe dos trabalhadores autônomos, a esquerda perdeu espaço para os extremista de direita, como se viu na greve dos caminhoneiros. Mas isso é histórico, basta lembrar a relação de paixão que os taxistas de São Paulo tinham em relação a Paulo Maluf e a relação de Maluf com os golpistas de 1964. Maluf fez parte do golpe civil-militar contra Jango.

No pós-64, a esquerda também perdeu espaço para os evangélicos da teologia da prosperidade. Dê uma olhadinha nas emissoras evangélicas que dominaram o espectro brasileiros e você vai entender. Se para o autoritarismo antidemocrático a ordem é a solução, para os evangélicos a fé individualista vai te fazer prosperar economicamente.

No golpe de 2016, os evangélicos se uniram aos ultraconservadores do Brasil, propagaram o discurso de ódio, da prosperidade financeira incompatível com direitos,  do terror comunista de um mundo com direitos sociais, do machismo e outros demônios que resultaram no golpe associado às petroleiras internacionais.

Mas essa dificuldade com os autônomos também está no cerne da tradição marxista, na divisão entre trabalho e capital. Isso é muito complexo e muitas vezes tratado de forma simplista porque é assim que pensamos normalmente.

O trabalhador autônomo não é capital, é um trabalhador que busca sobrevivência. Pode ficar rico e se tornar patrão, empregar vários funcionários, pode sim, mas isso não acontece necessariamente, nem diariamente. A maioria dos trabalhadores autônomos serão isso mesmo, trabalhadores autônomos até o fim da vida, nada mais que isso. Somente este ano, a Receita Federal cancelou 1,3 milhão de CNPJs de por falta de pagamento dos R$ 50,00 mensais. dos microempreendedores autônomos. O microempreendedor está mais para auto escravo do que para pequeno burguês. Ele precisa de garantias e proteção social.

Essas contradições e riscos afastaram a esquerda dessas categorias. A esquerda brasileira nunca criou um projeto para abarcar o trabalhador autônomo, nunca definiu essa categoria como prioridade, salvo dentro de um programa maior para o país. Alguns até os atacam e chamam de pequenos burgueses. Sempre houve um certo estranhamento na concepção da esquerda com o autônomo.

Mas a grande utopia da esquerda deveria ser justamente o trabalhador autônomo, não o trabalhador que bate o ponto, cumpri ordens, horários e tarefas. O trabalhador autônomo deveria ser o projeto realmente revolucionário da esquerda, conquistar garantias sólidas para essa categoria, permitir que todo o trabalhador pudesse ser autônomo por meio de estruturas econômicas como associações, cooperativas, economia solidária etc. Há uma real ou utópica liberdade no trabalho autônomo que poucos esquerdistas podem reconhecer.

A tradição marxista tem muita dificuldade com essa questão. Não se encaixa muito bem na tradição marxista, apesar de toda a riqueza filosófica, histórica e sociológica, a contradição existente atualmente entre o trabalhador autônomo (que seja um pequeno empresário) e as super, mega, hiper corporações financistas e de megacorporações globais.  É essa dialética que precisa ser entendida por concepções ideológicas que buscam uma sociedade mais justa, igualitária e livre.

Sem essa compreensão, o caminhoneiro, o vendedor de cachorro-quente e a confeiteira autônoma se sentem mais próximos dos ideais de Donald Trump do que de seus clientes e amigos.  Ao sonegar R$ 100,00 de imposto para sobreviver, o autônomo se sente solidário ao problema que o Itaú teve com o Carf. É preciso projetos que não só tirem os autônomos da informalidade social, mas também os tirem da informalidade fiscal. Reajustar o Imposto de Renda e permitir contratação de contas bancárias como pessoas jurídicas , crédito e muitas outras questões.

É difícil também para a tradição marxista, se não impossível, compreender as contradições na identidade de classe entre o funcionário que recebe 20 mil, 30 mil, 50 mil ou mesmo 100 mil reais (como alguns funcionários do Estado brasileiro) e o trabalhador que ganha salário mínimo. É um abismo que precisa ser reconceituado. Nas sociedades contemporâneas, talvez haja um fosso dialético entre trabalho e trabalho ultra rentável ou entre capital e autônomo que precisa ser compreendido e explorado.

O ex-presidente Lula compreendeu um pouco isso ao dar aval e implantar em seu governo a Lei do Microempreendedor Individual (MEI). A lei  permitiu que milhares de pessoas pudessem ter garantias sociais que não tinham, como contribuição na previdência, auxílio-doença, auxílio gestante, aposentadoria por invalidez, salário-maternidade e pensão por morte.

Se a esquerda tivesse um projeto mais bem definido, poderia ter impedido que a legislação ficasse conhecida apenas como MEI. Deveria se chamar Lei do Microempreendedor Individual e Trabalhador Autônomo para dar uma identidade mais correta e não ilusória para essa categoria que não para de crescer no Brasil, com cerca de 7 milhões de pessoas atualmente.

Talvez a ampliação dos direitos do MEI possam também melhorar a vida dos trabalhadores do setor privado e público. A questão não é negar a contradição entre capital e trabalho, mas talvez reconceituá-la a luz de um tempo de super acumulação financeira.