.Por João Neves.

Anitta e Letrux terminaram o ano de 2017 no alto posto da fama por serem, a primeira, o maior ícone pop da última semana e, a segunda, indicada como uma das artistas que melhor assume a estética, irreverente e problematizadora, do discurso feminino.

Sempre nos antecipamos a dizer sobre “o começo do fim do mundo”. Nossa educação, a pelo menos XXI séculos, tem nos preparado a encarar a vida por esse ângulo agudo. Talvez estivéssemos, apesar da constante recusa, no fim do começo, enredados em aspirais vibrantes. Disso, é apenas necessário assumir a difícil tarefa de ser parte, ou partir, da composição.

Caminhava rumo ao posto de gasolina, em uma rua de mão dupla, quando me dei com a face de uma menina [23 anos suspeito]. A reação foi normal – Ela teve MEDO! Pensei: Poderia ser eu, o monstro? O texto “O que fazer com a arte de homens monstruosos?”, lido no dia, me acompanhavam naquela caminhada. Minha resposta imediata: claro que sim, eu estava altamente gabaritado para executar a função, caso não optasse por uma metamorfose subjetiva.

Vejamos. Minha mãe, em meados da década de 1970, veio com 17 anos do Paraguai. Moveu-se, como qualquer pobre migrante, por razões obvias – Não queria apreciar o fim dos tempos no asilo dos miseráveis.

Já em terras brasileiras, depois de andar por alguns rincões do sudeste, por ironia do destino, estava na hora certa e no momento exato, com simpatia e sutileza, à beira de sua emancipação econômica. Mas ela optou pelo casamento.

RECONTANDO. Foi convidada, ainda jovem, depois de alguns anos na cidade do sertão da farinha podre, para assumir o cargo público de secretária administrativa da universidade federal da região – Nessa época não havia concursos, e sim, minha mãe foi secretária de “nobres” (pero no mucho) professores universitários.

Aos 24 anos namorou e se casou, com 32 gestou o que viria a ser o mundialmente conhecido por *947*63560*. Seria muita pretensão uma jovenzinha, a qual acabava de se ascender em um carreira de cargo público, vinda do Chiriguelo tomasse valores [feministas] que ressaltassem o começo de outros tempos. Mesmo com independência financeira – ventos novos da época – os limites impostos foram determinantes.1

As experiências sofridas por minha mãe – Quantos monstros ela não encarou por aí? – não lhe permitiram ultrapassar algumas fronteiras que somente uma agência coletiva consegue transpor. Reflexão de ordem sexual, quando (anal)isadas por mulheres em seu tempo de juventude (1970-1980) eram apagadas em função da ordem ou do partido. Por esses e por outros, apesar da dedicação de minha mãe em olhar atenta e cuidadosamente para outras subjetividades, a menos de 10 anos que falamos sobre relação de gênero.

Ela adorava TV, sempre se deixou guiar pelas vozes e imagens do aparelho [Agora não desapega do smartfone, espero que ela leia isso]. Lembro-me de fazerem (papai e mamãe) juntos investimentos para acompanhar, com qualidade e alta resolução, as transmissões televisivas. A mídia brasileira, salve raras exceções da esquerda, não se debruçou sobre a temática de gênero.

Quando fui a escola algumas professoras, despertadas pelo debate feminista, procuravam quebrar as didáticas do patriarcado. No entanto, muito mais que estas educadoras, eles, que ainda seguem na dianteira, produziam jogos, filmes, músicas, livros, carros, cidades e, não bastando, se elegiam, como ainda permanecem, para coordenar a porra toda.

ISSO ME FEZ UM MONSTRO!

Mas, como a história é movimento, a investida feminista confrontada no passado por ternos, gravatas, jeans e barbas, sem se arrefecer, apenas ramificou as potência do emergente. Le Monde Diplomatique assumiu! Está nas bancas, “a revolução será feminista”. Falta, contudo, que a Folha Veja e anote, pois o Estado e o Globo precisam assumir, a façanha está ocorrendo!

Quem ouço para me metamorfosear? Música DJ! Anitta e Letrux terminaram o ano de 2017 no alto posto da fama por serem, a primeira, o maior ícone pop da última semana e, a segunda, artista que assume a estética, irreverente e problematizadora, do discurso feminino. Apesar das diferenças poéticas e performáticas, ambas receitas partilham de uma mesma sensibilidade. Quer ver?

É inegável o avanço da presença de mulheres em diferentes esferas do social. Das lutas históricas articuladas pelos movimentos feministas muitos frutos estão sendo colhidos. Não obstante, velhas e novas bandeiras ainda são alçadas, pois mulheres ainda são vítimas de violências doméstica e sexual, da mesma forma que sofrem, em diferentes espaços, de mecanismos sutis de subordinação e silenciamento.

Na indústria musical não seria diferente, entrevistas, vídeos, gravações musicais e trabalhos acadêmicos já serviram de denúncia à misoginia e a dissimetria entre gêneros existentes nesse universo artístico. Do momento da composição até a produção de um CD ou show o sexo masculino é predominante e não são poucas as vezes que esses sujeitos acabam reificando o machismo e a dominação sexual.

Frente a isso é evidente como as interferências e os campos de lutas se alargaram tanto pelos movimentos feministas organizados, quanto por outros sujeitos engajados no campo das artes. Começa a se desenhar novos comportamentos e, por conseguinte, novas propostas poéticas e estéticas. Haja vista que “as questões do mundo privado, da subjetividade, da família, da sexualidade, das linguagens corporais ganharam visibilidade”2, outros horizontes de debates e problematização foram abertos à sociedade, agora hiperconectada.

Por tanto, é necessário refletir como essas indagações foram ganhando contornos diferentes em determinados espaços e por sujeitos que vivenciavam outras experiências. O exemplo Anitta e Letrux, podem contribuir para esse tipo de reflexão. Afinal, apesar de participarem, de alguma maneira, do debate sobre sexualidade e feminilidade elas estão em extremos opostos em suas produções. Anitta, além de dançar, cantar e provocar/renovar a velha indústria cultura, quer vender Ifood. Letrux, por sua vez, prefere ocupar a Tijuca e fazer dali seu espaço de produção e caixa de ressonância para suas questões.

Muitos sabem falar sobre o funk, mas poucos realmente o escutam. O tema da sexualidade no mundo Funk sempre foi maior o reboliço, pois, se por um lado, o sexo da favela era lido como obsceno e contra a moral cristã, por outro lado, aquelas que estavam do lado de fora da cena, ao escutarem músicas compostas por mulheres que bradavam: “minha buceta é o poder” (Gaiola das Popozudas) ou “Sou cachorra, sou gatinha. Não adianta se esquivar. Vou soltar a minha fera e boto o bicho pra pegar” (Tati Quebra Barraco); logo pensavam que essas vozes tratavam um “neofeminismo”.

Partindo do pressuposto de que “a liberdade sexual feminina é uma das grandes temáticas do funk feito por mulheres”3, algumas militantes propunham que essas cantoras traziam à tona questões ainda não resolvidas na sociedade, e que, como coloca Bia Cardoso (2014), “a revolução sexual começou nos anos 70, mas parece não ter alcançado sua plenitude na prática, especialmente para as mulheres. Então, as funkeiras acabam sendo uma boa novidade e até mesmo um frescor para uma pauta importante e muito estigmatizada”4. A impressão se repete com o video clipe “Vai Malandra”. Ivana Bentes disserta na revista cult que:

“A bunda (e o corpo das mulheres) pode se deslocar da objetificação para a subjetivação! A bunda viva de Anitta com sua celulite sem photoshop é sujeito e não objeto. Se as mulheres fazem o que quiserem com seus corpos (a Marcha das Vadias explicou isso para a classe média), elas podem inclusive se “autoexplorarem”, ensina o funk. A bunda ostentação de Anitta no início do clipe já aponta para esse outro feminismo (de mulheres brancas, apenas? Acho que não!)”

Indo por outro sentido, estou convencido de que “alguns artistas de funk quando entram em cena acabam subvertendo certas posições que, tradicionalmente, constituem o lugar do feminino e do masculino. Todavia, essa subversão, na maior parte das vezes, não se configura como um tipo de resistência, tampouco com espécie de plataforma feminista”5.

Complementando esse raciocínio, digo que as performances dessas mulheres correspondem a experiências cotidianas e a diálogos com a sociedade que ela está inserida. E que hoje pulsa, de diferentes formas e valores, o debate feminista. A medida que estas reflexões ganham espaços e canais de influência na contemporaneidade essas meninas que antes eram apenas “cachorras”, “popozudas” ou “safadas” no meio Funk, agora começam a repensar e produzir discursos, a partir de seus próprios contextos, sobre seus corpos e sexualidades.

Agora é a vez da malandra. No caso da Anitta, sua atuação corresponde, e muito, com as ganancia do mercado da música. Basta 6 segundos de atenção para percebermos o sucesso do jogo de marketing que implicou essa produção. Mais do que reverberar um debate ou empoderar o corpo da mulher, o principal, assumamos, era a grana. Os signos da ostentação orientavam cada batida.

É inevitável questionar, no entanto, a maneira pela qual esse jogo ambíguo apresentado nessa cultura trouxe à tona outras feminilidades, quer dizer, outras formas de ser mulher na contemporaneidade, mesmo que isso aponte para um sentindo oposto do que as lutas feministas pretendem. Se Anitta está assumindo um corpo glamorizado, que atenda as exigências do mercado mundial interconectado e da nova industrial digital da música, não serei eu a julgá-la, mas estou disposto a ouvi-la, pois

“Há muito o movimento de mulheres e as teorizações que a ele se articulam tornaram evidentes as distinções e as fraturas no interior do movimento e do pensamento feministas. Somos mulheres de muitas formas e jeitos, somos mulheres de diferentes raças, idades, classes, orientações sexuais; de diferentes culturas, religiões; talvez até seja possível dizer que somos mulheres de diferentes tempos, ainda que estejamos todas vivendo numa mesma época”.6

Na esteira das novas produções no mundo feminino, além de Anitta e tantas outras que se enveredaram pelo mundo funk, vejo a criação da Mana Luta! Em Campinas e leio o Manual de Ginecologia Natural e Autônoma. Tudo embalado pelos sons de Juana Molina e Fémina

Notas

1 O vocalista da banda Touche Amore, Jeremy Bolm, compôs a canção “Palm Dreams” após a morte de sua mãe por câncer. Em entrevistas, o músico conta que nunca perguntou a ela o motivo de sua migração de uma pequena cidade de Nebraska (EUA) para a Califórnia (EUA) em meados da década de 1970. Seus sentimentos seguem a tônica do hardcore: I am still bereaved/ Come every ocean breeze/ What was it that brought you west/ Where I lay my head to rest?. Ao contrário de Bolm, antes que fique sozinho e por minha conta, pergunto a minha mãe sobre nossa história.

2 RAGO, Margareth. Adeus ao feminismo? Feminismo e (pós)modernidade no Brasil. Cadernos AEL, Campinas, n. 3/4, p.11-43, 1996, p.36.

3 CARDOSO, Bia. Funk e Feminismo. In: Blogueiras feministas. 4 de set. 2014. Disponível em: <http://blogueirasfeministas.com/2014/08/funk-e-feminismo/>.

4 Ibid.

LOPES, Adriana Carvalho. Funk-se quem quiser: No batidão negro da cidade carioca. Rio de Janeiro: Bom texto: FAPERJ, 2011,p. 166.

6LOURO, Guacira Lopes. Feminilidades na pós-modernidade. Labrys estudos feministas. Brasília. v.1 n.10. pp. 1-14, jul-dez. 2006, p. 1.

João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.