Apesar de o golpe parlamentar de 2016 ter revertido várias conquistas da população brasileira, a internet no Brasil está um pouco mais segura do que nos EUA porque foi aprovada uma lei, em abril de 2014, pelo governo Dilma Rousseff (PT). A Lei ficou conhecida como Marco Civil da internet e impede que a mudança seja feita pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). Será preciso uma lei para que as telefônicas controlem e cobrem pedágio na internet, como vai acontecer agora nos EUA com o fim da neutralidade da rede.

A decisão da Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC, na sigla em inglês) de revogar a neutralidade de rede no país pode ter repercussões também no Brasil. Aprovada em 2015 pelo órgão durante a gestão de Barack Obama, a norma foi derrubada em votação ocorrida na quinta-feira (14) com aval de conselheiros indicados pelo Partido Republicano, seguindo diretriz da administração de Donald Trump.

A regra impedia provedoras de acesso à internet de tratar de forma discriminatória os dados que circulam em suas redes, de censurar e bloquear sites, de piorar ou retardar a conexões intencionalmente e de priorizar serviços e informações de parceiros. Sem a neutralidade, as operadoras poderão adotar essas práticas, estando autorizadas, por exemplo, a vender pacotes diferenciados como no caso da TV por assinatura – um somente com e-mail, outro com redes sociais e vídeos e assim por diante.

No Brasil, até o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes (PSDB), elogiou a legislação aprovada pelo PT durante o governo Dilma. “A revogação da neutralidade da rede nos Estados Unidos fere um de seus princípios mais importantes: a liberdade de conexão. Ainda bem que no Brasil o Marco Civil da Internet nos protege de medidas dessa natureza”, diz o tuíte.

Já as empresas de telecomunicações já ficaram uoriçadas com a legislação. Em nota divulgada após a votação de quinta-feira nos EUA, o Sindicato Nacional de Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (Sinditelebrasil) defendeu o poder de controle e censura total nas mãos das telefônicas.

O Marco Civil da Internet, aprovado com a mobilização da sociedade brasileira e com o apoio do governo Dilma, elenca a neutralidade de rede como um de seus princípios e determina que o “responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”.

A interferência no tráfego só é permitida em casos especiais, como a priorização de serviços de emergência ou se for um “requisito técnico indispensável” à prestação do serviço. O bloqueio de e-mails em massa (também conhecidos como spams) é um exemplo de gestão da circulação de dados na internet benéfico aos usuários. Mas a regulamentação do Marco Civil define de forma estrita as situações excepcionais em que isso pode ocorrer, como nos exemplos citados.

O Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações informou à Agência Brasil que o governo federal não pretende realizar qualquer mudança nas normas sobre a neutralidade de rede no país. “A lei no Brasil está em vigor e não há nenhuma movimentação para mudanças. O Marco Civil é uma conquista da sociedade brasileira e somos contra mudanças nessa legislação. Evoluções da tecnologia podem levar a mudanças na lei e aprimoramentos, mas não é esse o caso”.

Mudança difícil

Para especialistas e organizações da sociedade civil, não há relação entre a decisão da Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos e o quadro brasileiro. Segundo a conselheira do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI Br) Flávia Lefèvre, as legislações dos dois países são bastante diferentes. Enquanto lá o acesso à internet é tratado como serviço de telecomunicações, aqui é considerado serviço de valor agregado, não cabendo sua regulação à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

A revogação teria de passar, portanto, por uma mudança no Marco Civil da Internet. Na avaliação de Rafael Zanatta, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), diferentemente dos Estados Unidos, em que bastou a decisão da FCC, a aprovação de uma lei alterando o Marco Civil seria mais difícil. “Aqui o custo político é maior. Não é fácil mexer no Marco Civil, uma legislação de referência internacional e um texto construído democraticamente por um longo processo.”

Para além da dificuldade do processo, Flávia Lefèvre e Zanatta consideram que no mérito a revogação ou flexibilização seria um grande retrocesso. Se por um lado as empresas buscam isso para aumentar seus lucros e ganhar capacidade de vender pacotes diferenciados, por outro para os usuários tal cenário poderia trazer prejuízos.

“Se você quebra a neutralidade em um país com condições tão desiguais como é o caso do Brasil, em que só temos 50% dos domicílios conectados e a maioria pelo celular, a diferença pode se aprofundar com prejuízos claros para finalidades de inclusão digital e universalização do acesso à internet, objetivos previstos em lei e que devem, portanto, ser respeitados”, alerta a conselheira do CGI Br.

O presidente da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico (camara-e.net), Leonardo Palhares, afirma que a extinção da neutralidade de rede é um retrocesso para a sociedade e para a economia digital norte-americana, que poderá, sobretudo, limitar o desenvolvimento livre e democrático da internet, uma vez que possibilita às empresas de serviço de TV a cabo e internet, por exemplo, dar tratamento preferencial para alguns servidores e cobrar mais para que consumidores acessem conteúdos específicos ou até mesmo restringi-los. “A neutralidade de rede é fundamental para o desenvolvimento da Economia Digital, pois assegura uma internet livre e sem discriminação, beneficiando usuários e a inovação via startups. Toda iniciativa que vise a privilegiar a poucos em detrimento da liberdade da internet deveria ser repudiada” declara Palhares.

Palhares também elogiou a legislação do governo petista: “vale ressaltar que neste contexto o Brasil fez melhor. A neutralidade de rede foi desde 2014 declarada pelo Marco Civil da Internet como um direito dos cidadãos brasileiros”.

Impacto no tráfego

Ainda é incerto se as novas regras norte-americanas para a internet terão consequências no tráfego de dados dos usuários brasileiros. Sendo a internet uma “rede de redes”, muitas vezes o acesso a um site ou conteúdo (como um e-mail ou um vídeo) se dá em provedores de conteúdo com servidores nos Estados Unidos.

Contudo, especialistas do Comitê Gestor da Internet no Brasil consultados pela Agência Brasil afirmaram que práticas de interferência no tráfego nos EUA não devem afetar os internautas aqui. Em primeiro lugar, pelo fato de as operadoras que entregam esses dados ao usuário final terem que respeitar a neutralidade de rede. Em segundo lugar, porque muitas plataformas e sites, como é o caso do Netflix, mantêm seus conteúdos em servidores no Brasil, evitando que um dado enviado ou recebido tenha que circular pelas redes. (Agência Brasil e Carta Campinas)