.Por Ricardo Pereira.

Como veículo para Tom Cruise, “Feito na América” cumpre o seu papel, mas não se limita a isto. Encontramos o ator num território em que já o vimos diversas vezes, em cenas explosivas e arriscadas. Neste sentido não haveria muito o que comentar a respeito do filme, mas por se tratar da cinebiografia de Barry Seal o filme acaba por trazer para a tela um tema que, de certa forma, os Estados Unidos preferiram manter encoberto: a obscura história da política de combate às drogas nos Estados Unidos – cujo modelo serve às políticas de muitos outros países, entre eles, o Brasil.

Modelo este que só tem servido para gerar mais violência e corrupção porque, talvez, nunca tenha tido os objetivos que declara. No caso dos Estados Unidos o que o filme relembra é o uso político que Washington reservou a este modelo – que não impediu o avanço das drogas América adentro porque não era este o seu propósito, mas como ajudou, sim, a financiar as intervenções norte-americanas no continente, conhecida na década de 1980 como “Doutrina Reagan”.

Mas quem é Barry Seal, personagem de Cruise no filme? Quando “Feito na América” começa, no ano de 1978, vemos Seal como um piloto da aviação civil trabalhando para a extinta companhia aérea TWA. Tudo corria aparentemente bem em sua vida até que as autoridades norte-americanas descobrem que o piloto contrabandeava charutos cubanos entre um voo e outro. Mas sua “punição” vem na forma de um convite da CIA para sobrevoar e fotografar áreas dominadas pelos movimentos revolucionários de esquerda na América Latina.

Essa nova atividade o coloca em contato com outra organização que começa a se estruturar naquele mesmo período, o narcotráfico – mais especificamente, num de seus cartéis mais organizados e violentos, o de Medellín, na Colômbia. A partir de então Seal passa a agir como uma espécie de agente duplo, trabalhando ora para a CIA ora para Pablo Escobar, a quem fornece armas.

Como o objetivo do filme não é propriamente a denúncia, mas o entretenimento, este pano de fundo aos poucos se dissipa em favor das cenas de ação. Trabalhando para este dois patrões – a CIA e o narcotráfico – e, no fundo, apenas para si próprio, Seal tornar-se-ia um dos homens mais ricos do Arkansas e sua consequente vida de luxo – como sempre acontece no cinema norte-americano – ganha ares de sucesso.

A riqueza é a meta a ser atingida na cultura capitalista e os meios de obtê-la, sejam honestos ou não, importam menos que os desejos de consumo que esta pode satisfazer. O personagem pode até cair do cavalo mais adiante, mas a forma como Hollywood pinta sua gastança tende muito mais a fascinar do que a repelir. Poderia até se questionar aqui se há uma forma honesta de enriquecer sob as hostes do Capital, mas os propósitos deste artigo ficariam, assim, comprometidos. Interessa-nos mais mostrar como este papel de “agente duplo” de Seal funciona como metáfora e síntese da política de combate às drogas que os Estados Unidos definiu para o território latino-americano.

É verdade que “Feito na América” não vai tão a fundo nesta história quanto apurou Gary Webb, repórter do San Jose Mercury News que, em 1996, publicou uma série de matérias intitulada “Dark Alliance” (Aliança Sombria), revelando a cumplicidade do governo de Ronald Reagan (1981-1989) com os traficantes de cocaína e crack que subsidiavam a compra de armas para os chamados Contras, grupo paramilitar de direita que visava a derrubada do governo sandinista na Nicarágua, um dos alvos da “Doutrina Reagan”. Resumindo, a própria CIA financiava o tráfico para conseguir fundos que seriam investidos na derrubada dos sandinistas.

Enquanto a primeira-dama Nancy Reagan encampava nas rádios e televisões norte-americanas a campanha “Just Say No!” de prevenção ao consumo de drogas, o governo de seu marido ajudava a disseminar a cocaína e o crack pelas periferias do país. Esta história foi contada no livro de Webb, “Dark Alliance: The Cia, The Contras and The Crack Cocaine Explosion” e, nos cinemas, no filme “Kill The Messenger”, de 2014, exibido no Brasil como “O Mensageiro”, com Jeremy Renner no papel do jornalista.

Mas se o Estado podia exercer esse papel de “agente duplo”, a Seal não era reservado o mesmo privilégio. Em 1984, o piloto foi indiciado por tráfico de drogas, multado e condenado a prestar serviços comunitários. O cartel de Medellín foi menos generoso com Seal. Em 1986 foi assassinado pelos traficantes no estacionamento do albergue do Exército da Salvação, onde cumpria sua pena.

O detalhe curioso é que o pai de Doug Liman, diretor do filme, foi o investigador do caso Irã-Contras, escândalo político que quase derrubou Reagan, quando se descobriu que o governo norte-americano vendia armas ilegalmente para o Irã – sim, o mesmo Irã, que hoje os Estados Unidos trata como inimigo -, usando o lucro para financiar a famigerada Doutrina Reagan. Liman, portanto, sabe do que está falando. Mas apesar do fundo político, das diversas mortes ao longo do filme, o roteiro de Gary Spinelli trata a história de Barry Seal que, durante cinco anos, enganou os dois maiores poderes da América – os Estados Unidos e o narcotráfico – com muito mais humor do que realismo.