Reportagem Especial

Elas não estão sozinhas: o trabalho de um grupo de mulheres voluntárias faz do MADA um lugar de apoio e acolhimento, em Campinas

Por Amanda Cotrim
Fotos: Edu Fortes

De repente elas chegaram lá, diante de outras mulheres, desconhecidas, pobres, ricas, negras, brancas, magras, gordas, jovens ou maduras. Elas têm muito a dizer lá dentro, mas quase ninguém para escutá-las aqui fora. São vidas que chegam espremidas em um corpo que tentou o suicídio, que apanhou do marido ou do pai, que sente ciúmes e quer controlar os relacionamentos, um corpo-delito tido como louco por parte da sociedade. Para chegarem até ali foi preciso coragem. Elas levam para aquela sala uma longa teia de relatos de violências, abusos, excessos, anos de sofrimento e um desejo: saírem do desamparo. Na rua, na vizinhança, na escola, no trabalho, entre os familiares, são reduzidas a um rótulo: “desequilibradas”. Mas lá dentro, naquela sala, elas são lançadas a ocuparem outras posições, onde o medo dá lugar à esperança de poderem mudar suas vidas e se reconciliares com suas histórias. Elas são MADAS (Mulheres que Amam Demais Anônimas).

O grupo, voluntário e sem fins lucrativos, reúne-se há 14 anos, semanalmente, todas as quartas-feiras, em uma sala cedida pela Igreja Católica, no bairro Cambuí, na região central de Campinas. Os únicos requisitos para mulheres frequentarem as reuniões é o desejo de romper com relacionamentos destrutivos e o dever de manter todas as outras companheiras de MADA no anonimato. Ao todo são 30 núcleos no Brasil e um em Portugal.

“A primeira vez que eu pisei no MADA foi no ano de 2012, levada por uma amiga. Eu confesso que, num primeiro momento, não assimilei direito o que eu ouvi ali porque eu estava muito doente. Só chorava. Sofria assédio moral e sexual no meu antigo emprego e vivia um caos no meu casamento. Não tinha vontade de viver. Até que naquele ano eu tomei muitos remédios para poder dormir para sempre; perdi os sentidos, convulsionei e fiquei em coma por 38 dias. Voltei à vida por um milagre”. Essa é uma parte da história de Ana Nascimento*, que hoje tem 48 anos. Na época que tentou o suicídio, Ana pensou que aquilo iria aproximá-la de seu, hoje, ex-marido, com quem conviveu por nove anos. “Puro engano. Em menos de um ano a gente estava se matando de novo”.

Em 2014, o ex-marido de Ana lhe deu uma surra que a levou para o hospital. “Eu tinha feito uma viagem com a minha irmã e minha mãe e ele achou que eu tinha ido viajar com outro homem. Sem me deixar explicar, começou a me agredir. Eu morava em um condomínio de classe média alta, em Campinas. A casa era enorme. Tinha uma escada toda de vidro. Ele me levou lá para cima aos chutes. Eu corri e me escondi no banheiro, atrás do boxe. Ali ele me pegou e me bateu muito. O sangue se misturou com a água e ele acabou escorregando. Foi quando eu consegui fugir e pedi socorro”.

Após esse episódio de violência, Ana pediu o divórcio, uma metáfora de uma decisão mais importante: a de se libertar de um relacionamento destrutivo e poder se dar uma nova chance. Para isso, reconhece, o grupo MADA foi fundamental: “Com o MADA eu percebi que eu não dava valor para a minha vida; eu dava valor para a vida dos outros. No grupo a gente trabalha as nossas decepções e frustrações. Afinal, quem não tem monstros dentro de si? São poucas pessoas que assumem isso. Hoje eu entendo melhor tudo que me aconteceu”, avalia.

Um dia de cada vez

Entre os lemas do MADA estão “um dia de cada vez”, “só por hoje” e “devagar se vai ao longe”. Palavras que colocam essas mulheres no presente e tentam projetar um futuro com menos sofrimento, sem esquecer-se do passado, não com rancor, mas para compreender suas próprias vidas e seus sintomas.

“O MADA não trata apenas mulheres que vivem relacionamentos destrutivos com seus companheiros, mas qualquer relacionamento de abuso, que pode ser com amigos, familiares ou nas relações interpessoais de trabalho. Amar excessivamente o outro, querer controlar a vida de outra pessoa é uma doença. Dar liberdade para o outro é um sinal de amor”, contextualiza Carla Esperança*, 50 anos, uma das fundadoras do núcleo em Campinas. “A gente diz muito no MADA que é preciso viver e deixar viver”, complementa.

O acolhimento às mulheres que chegam ao MADA se dá, principalmente, por meio do método do Espelho, um exercício de escuta e de fala, onde não cabe julgamentos ou intervenções. Em roda, as mulheres, que querem falar, relatam suas angústias e as razões de estarem ali. Não há debate ou discussões sobre os depoimentos, o que, para Fernanda Barbosa*, de 38 anos, é o grande diferencial do grupo, uma vez que permite que as mulheres sejam sinceras e, assim, possam se conhecer melhor por meio da escuta do depoimento de outra mulher. “Lá dentro não se pode usar máscaras, senão não vai funcionar. Não pode mentir. O tratamento se dá pela escuta e pela fala. Ali a gente se identifica com as histórias uma das outras, porque ao escutar outras mulheres, eu lembro o motivo ir parar no MADA e as razões pelas quais eu não posso parar de frequentar o grupo”. Ela participa do MADA desde 2010. “Fui por indicação do meu marido”.

Fernanda me conta que sempre foi sustentada pelos pais e que, aos 19 anos, se casou porque queria liberdade, “mas eu não sabia nem fritar um ovo”. Ela relata que quando procurou o MADA era uma pessoa dependente emocionalmente e financeiramente do marido. Tinha crises e crises de ciúmes. “Eu vigiava, seguia e perseguia…Não deixava ele em paz. As brigas eram constantes. Eu engravidei e tudo piorou. Por muito tempo deixei minha filha de lado para viver para ele. Chegamos a nos agredir fisicamente, foi uma sucessão de violências. Ele não podia mascar chiclete ou passar perfume, para você ver o tamanho da minha doença”, acredita.

O basta de Fernanda, no entanto, não veio de uma hora para outra, ao contrário, se deu em um processo com altos e baixos. “Só após um ano frequentando o MADA que o clique veio. Hoje, eu percebo que o meu marido abusava da minha dependência emocional para me rebaixar. Ele me xingava de burra e de louca e eu acreditava”, reflete.

A escuta e o acolhimento no MADA

O “clique” que transformou a vida de Fernanda só foi possível porque ela insistiu e foi constante nas reuniões. “Muitas mulheres vão a uma ou duas reuniões, se sentem bem e acham que estão ótimas. Mas depois elas sempre voltam. É preciso insistir e se conscientizar”, sugere.

Em sete anos, a vida de Fernanda se transformou, ela decidiu estudar, fazer faculdade, passou em concurso público, começou a trabalhar em uma grande instituição de Campinas, comprou seu carro e hoje cogita fazer mestrado. Pergunto se ela pensou, após o “clique”, se separar do marido. Ela prontamente responde que não. “Ele é um pai maravilhoso, um homem honesto e um bom marido. E ele também precisou mudar, porque eu mudei. Antes a gente brigava e eu ia dormir na sala. Hoje eu não saio mais da minha cama. A minha vida mudou”, reforça. “Atualmente eu dou meu depoimento no MADA sobre acontecimentos passados para que as novas integrantes se sintam acolhidas e possam falar também”, explica.

O MADA é um tratamento que se baseia na fala e na escuta, em que o fato dessas mulheres verbalizarem o sofrimento, permite, senão curá-lo, ao menos que elas tenham consciência de sua origem e possam, portanto, assumi-lo. Para Ana, a mulher que chega ao grupo está tão cansada, que se abre. “As pessoas já não a escutam mais aqui fora, então quando essa mulher chega no grupo, ela se identifica. É um sentimento, uma sintonia verdadeira, única, que as pessoas aqui fora não entendem. Quando você se depara com um grupo de mulheres que está falando da sua dor, você se abre também”.

Rede de mulheres

Além do método do Espelho, o grupo se constitui pelo Amadrinhamento e pela leitura de extensa literatura, além disso, há os 12 passos do MADA, indicações que ajudam as integrantes a refletirem sobre os seus conflitos, de modo anônimo. Em um dos 12 passos as mulheres são convidadas a escreverem um depoimento pessoal sobre a infância e o relacionamento com os pais. “A mulher escreve para ela mesmo, e se quiser compartilhar com uma amiga ou com a madrinha, pode. São perguntas norteadores para o autoconhecimento”, explica Fernanda.

Já no Amadrinhamento cada integrante do grupo tem uma ou mais madrinhas. Em momentos críticos, ao invés da mulher brigar com o companheiro, com o filho ou com o colega de trabalho, ela liga para a madrinha para desabafar. “Aí a raiva passa e você não coloca tudo a perder”, considera Fernanda. “Hoje eu sou madrinha, mas eu já precisei de uma madrinha. O que eu digo para cada afilhada é que há salvação. Eu sei sobre o que ela está passando”, reforça.

O MADA, seja pelo Espelho, pelo Amadrinhamento ou pelos 12 passos, parece contrariar o discurso o qual diz que as mulheres não são companheiras, que elas competem entre si. O que se acompanha, ao contrário, é uma rede de mulheres que estão ali por um único objetivo: acolherem a si e as outras. “Para mim, hoje, ser voluntária no MADA é um ato de gratidão. Eu recebi de graça a minha vida”, emociona-se Fernanda.

Amar demais é uma doença?

“Esse comportamento em que se encontram muitas mulheres, da falta de controle , por exemplo, são hábitos difíceis de serem transformados, não tem relação com ser uma doença. São mulheres criadas em uma estrutura social do patriarcado que produz MADAS”, reflete Júlia Oliveira*, 28 anos, professora, frequentadora do MADA há dois anos.

Júlia conheceu o Mada Campinas pela internet e decidiu frequentar as reuniões como uma possibilidade de ter os seus conflitos acolhidos. Ela conta que o grupo a ajuda muito e que “a cura é no sentido de transpassar os valores por meio da compreensão sobre a estrutura social do patriarcado que engendra as mulheres”, ressalta.

O excesso de ciúmes e de controle- uma queixa comum entre as mulheres do MADA- é uma posição que exige exclusividade na vida das pessoas com as quais elas se relacionam. “O MADA nos ajuda a transformar essa posição, nos fazendo pensar sobre as nossas atitudes”, indica Ana. Assim, as mulheres do MADA podem decidir se pagam ou não o preço sobre o sentimento que agora conseguem reconhecer. “Precisamos entender porque agimos assim, impulsivamente. Eu precisei entender os motivos de quase perder a minha vida por causa de um (des)amor. Eu queria só que ele gostasse de mim. Só isso e tudo isso”, complementa Ana.

Sem hierarquia e diversas classes sociais

O grupo é uma organização de mulheres, horizontal, que se pretende sem hierarquias. “Se tiver poder, estraga. A gente conversa sempre para que ninguém tenha o poder de mandar em ninguém. Algumas voluntárias coordenam algumas reuniões, são responsáveis pelos lanches e pelo café, mas não há um líder”, explica Carla Esperança. O grupo também se pretende plural, acolhendo mulheres de diversas classes sociais, o que mostra, segundo Júlia, que a questão de gênero não tem relação estrita com a questão social. “A mulher rica não está imune as dores de ser submetida a um sistema patriarcal”, opina. Além disso, o MADA não se limita a acolher mulheres cis-gênero. “Se a pessoa chega lá se identificando como mulher, será acolhida”, revela Carla, referindo-se às mulheres trans.

Organização anônima

Todas as mulheres que deram entrevista, aceitaram participar da reportagem sob a condição de terem suas identidades preservadas. Muitas delas não contam nem para amigos que frequentam o MADA. “Eu mesmo digo que às quartas-feiras tenho terapia de grupo”, diz Ana.

“Até hoje o meu marido não sabe que eu vou ao MADA, porque se eu contasse a ele e eu, porventura, tivesse uma recaída, ele diria que o grupo não estava fazendo efeito. Então prefiro mudar sem fazer alarde”, confidencia Carla.

Quanto às recaídas, Fernanda reconhece que elas existem, mas retornam cada vez com menos força. “Eu, por exemplo, não passo mais a noite sem dormir. Eu posso sentir ciúmes, mas agora não ajo no impulso; ao contrário, eu penso sobre o meu sentimento. Então o ciúmes existe, mas não de modo sofrido”, compara.

A opção dessas mulheres de não revelarem às pessoas que elas participam do MADA se deve, principalmente, ao estigmam social que o grupo sofre. O que, para Júlia, é uma questão de preconceito que vai além do MADA: “O estigmam sobre o coletivo existe porque há um estigmam sobre a mulher. Ela é sempre a louca. Então quando uma mulher vai ao MADA, é como se fosse uma chancela de loucura”, avalia. “O fato do MADA ser uma organização anônima é muito importante, porque isso garante uma segurança na narrativa dessas mulheres”, complementa Julia.

Mulheres que salvam vidas

Para Carla Esperança, o MADA é uma possibilidade para que mulheres possam viver com dignidade. “Fico imensamente emocionada ao ver que um grão de mostarda virou um mundo. No início era apenas eu, hoje somos muitas”, emociona-se ao lembrar dos primeiros seis meses em que apenas ela ia às reuniões do MADA na esperança de que o grupo se tornasse conhecido e tivesse adesão de outras mulheres. “Hoje, com mais de 50 participantes, posso dizer que a união é o alicerce para que o acolhimento seja possível”.

“Eu entrei no MADA pelo meu marido, mas me mantive por mim. Eu não quero voltar a ser a pessoa que entrou pela aquela porta pela primeira vez. Eu não quero depender de uma pessoa, me rastejar por um homem. Eu aprendi que no MADA eu não estou mais sozinha”, ressalta Fernanda. “O grupo é muito mais do que estou conseguindo dizer nessa entrevista. O MADA salva vidas”.

“Se eu encontrasse a Ana de antes de 2012, eu diria a ela: não sofra com tanta intensidade. Não chora. Não tire sua vida por uma desilusão. Calma. Tudo vai melhorar. Não espere tanto tempo para sair de uma relação falida. Você não vai mudar o mundo. Então, sofra menos, se valorize mais. Se ame mais”, finalizada Ana.

* Todos os nomes utilizados nessa reportagem são fictícios

Serviço:

Grupo MADA CAMPINAS POSSO AJUDAR
Rua Santos Dumont, 785 – Cambuí – Campinas
Igreja Nossa Sra. das Dores
Reunião: 4ª feira das 19h30 às 21h30
(aberto dede 29/06/2003)
E-mail: [email protected] / [email protected]

MADA pelo Brasil e pelo mundo:

Endereços

Nota da repórter:
Agradeço imensamente a todas as mulheres que participaram diretamente e indiretamente dessa reportagem. Agradeço por me permitirem entrar em suas casas, ouvir os seus depoimentos. Agradeço por me deixarem contar parte de suas histórias- tão íntimas- para outras pessoas, na esperança de que mulheres que estejam passando por situações parecidas como essas narradas, e se identifiquem como uma MADA, possam procurar ajuda.