Marcela, Temer e Barros

.Por Bruno Dias.

O Rio de Janeiro, município com a maior capacidade hospitalar em todo o país, agoniza em meio a uma crise econômica sem precedentes, deixando como marca o caos e a descontinuidade de atendimentos nas três esferas de gestão dos serviços de saúde, o que só interessa àqueles comprometidos com o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS).

A rede federal na cidade encontra-se num processo de dita reorganização que só a esfacela, enquanto a estadual sofreu cortes na ordem de R$ 1 bilhão, e a municipal é obrigada a absorver uma demanda reprimida e multiplicada.

Vejo um verdadeiro genocídio sendo promovido pelo Ministério da Saúde, que resolveu mexer em toda a rede federal instalada na cidade sem consultar nenhum dos órgãos reguladores e que não aciona nem Defensoria nem Ministério Público em meio à um estado em situação falimentar e um município capenga. Não há solução dentro do atual quadro para os desmandos que estão acabando com a rede pública federal na cidade”, declara à Abrasco Julio Noronha, médico do Hospital Federal de Bonsucesso e integrante do departamento de médicos federais da Federação Nacional dos Médicos.

Com mais de 20 anos de profissão, Julio foi exonerado da chefia da emergência do Hospital de Bonsucesso por denunciar junto ao Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) o fim das contratações e as sucessivas negativas do MS na reposição de recursos humanos.

Com a reorganização da rede, o atendimento de urgência e emergência do Hospital de Bonsucesso deverá atender unicamente pacientes com encaminhamento referenciado em casos coronarianos, o que, segundo o médico, constitui-se num verdadeiro crime contra a população, que terá ainda menos opções para os momentos de maior necessidade.

O repórter Lucas Vettorazzo, do jornal Folha de S. Paulo, acompanhou algumas histórias de usuários e de profissionais de saúde.

No relato, ficam evidentes como as políticas de austeridade e de descontinuidade no SUS têm promovido sofrimento e agravos nos estados de saúde de milhares de cariocas e fluminenses, muitos indo a óbito. Abaixo,a íntegra da matéria.

A aposentada Edeise de Almeida, 65, foi diagnosticada em maio do ano passado com câncer de mama. Dois meses depois, iniciou tratamento no Inca (Instituto Nacional do Câncer), unidade federal que funciona no Rio de Janeiro.

A paciente completou a quimioterapia em janeiro, mas somente três meses depois, em abril, conseguiu marcar a cirurgia de retirada da mama. A radioterapia teve início só quatro meses mais tarde.

A demora entre acabar uma etapa do tratamento e começar a seguinte tem sido constante na rede de hospitais federais do RJ, referência em doenças de alta complexidade. Roseni Barbosa, 48, diagnosticada em 2014, só conseguiu agendar a mastectomia em março deste ano, ainda que a lei determine que o tempo entre o diagnóstico e o tratamento não supere 60 dias.

A crise no Rio que deteriora a situação dos hospitais estaduais, chega agora à rede federal -sendo seis hospitais que atendem a diferentes especialidades e três institutos dedicados, como o Inca.

A situação se agravou com o fim de contratos temporários com médicos e da falta de concursos, congelados desde 2010 pelo Ministério da Saúde. O colapso da rede estadual sobrecarrega também emergências e ambulatórios federais.

Novos pacientes têm dificuldade de iniciar tratamento, e os antigos sofrem com a demora dos procedimentos. Na sexta (18), o conselho de medicina local entrou com ação na Justiça Federal pedindo que médicos temporários tenham seus contratos renovados imediatamente.

Hoje, a fila para cirurgias na rede está em 15,5 mil pacientes, segundo a Defensoria Pública da União. A fila é gerida pelo governo do Estado, mas pacientes alegam demora mesmo após darem entrada nas unidades federais.

A defensoria encontrou 70 mulheres à espera de mastectomia no hospital federal de Bonsucesso. Outras 50 estão na mesma situação no hospital do Andaraí, na zona norte.

A Folha apurou que há deficit de médicos, materiais e medicamentos em diversas unidades.

Rita Pereira, 64, paciente de Bonsucesso, teve de pagar do próprio bolso medicamento para tratamento de câncer que faltou por três vezes neste ano e que deveria ser distribuído de forma gratuita.

Serviços estão deixando de existir por falta de equipes. Em Bonsucesso, faltam anestesistas, o que dificulta a realização de cirurgias de rotina. Transplantes de fígado e córnea foram extintos. Dos sete oncologistas que atendiam no local, apenas quatro ainda dão plantão. A emergência funciona há quase cinco anos em contêineres.

“Nunca vi crise tão grave quanto a de agora”, diz o chefe do corpo clínico de Bonsucesso, Balthazar Fernandes, 65, desde 1977 na unidade. “Os pacientes esperam até seis meses para marcar uma cirurgia. Nos procedimentos oncológicos, a situação é ainda mais grave porque o câncer pode continuar a avançar.”

Vistoria do Conselho de Medicina do Rio no início deste mês constatou problemas graves em três unidades. Na oncologia do hospital do Andaraí, dos sete médicos (seis concursados), pelo menos dois estão de licença e outros três estão prestes a se aposentar. Resultados de biópsias podem levar até 120 dias.

No Cardoso Fontes, 28 pacientes estão internados em área para 19. Outros eram atendidos em cadeiras, por falta de macas. Um com morte cerebral ocupava a sala de sutura e sete pessoas eram atendidas nos corredores.

A crise se soma ao caos dos hospitais estaduais. O governo pena para pagar servidores em dia, além de atrasar pagamentos de fornecedores.

No Getúlio Vargas, os setores de proctologia e urologia foram fechados.

O Carlos Chagas fechou ginecologia, ortopedia e cirurgia plástica.

O Pedro Ernesto funciona por meio de liminar para receber recursos.

Uma ação garantiu que gases e luvas fossem confiscadas do almoxarifado do Estado e enviadas ao Hemorio.

No Instituto de Assistência dos Servidores, fraldas geriátricas são substituídas por sacolas de supermercado.

O drama também chegou aos hospitais municipais, e as unidades já fazem atendimento em corredores e há falta pontual de materiais.

O desempregado Roberto da Silva, 60, esteve no Salgado Filho para uma ressonância magnética. Teve de remarcar devido a problema no equipamento, de gestão do Estado. “A população já não tem mais para onde correr.”

Procurado, o Inca afirmou que as pacientes citadas estão sendo tratadas de acordo com “protocolos médicos consagrados mundialmente”.

A Folha pediu informações sobre queixas de demora em tratamentos em geral, mas o instituto se negou a comentar de forma genérica. Informou que a demora no caso de Edeise ocorreu em razão de um problema que ela teve no braço e que dificultou o início da radioterapia.

Sobre Roseni, negou que ela constasse na lista de pacientes, embora ela seja assistida por uma ONG que ajuda exclusivamente pacientes do Inca.

O Ministério da Saúde disse que os seis hospitais federais tiveram, no primeiro semestre, aumento de 9% nas consultas e 6% nos procedimentos em relação a igual período de 2016.

O ministério negou fila de mastectomia e afirmou que houve aumento de 60% das cirurgias. O ministério promove uma reestruturação dos hospitais federais que prevê especialização em cada uma das unidades em determinadas áreas. O objetivo é ampliar em 20% os atendimentos em oncologia, ortopedia e cardiologia.

A secretaria municipal de Saúde, da gestão Crivella (PRB), afirma que o hospital Salgado Filho vive aumento de demanda devido à crise em unidades administradas por outras esferas de governo e aumento de pessoas que perderam seus planos de saúde. Eventuais faltas de alguns insumos podem ocorrer, diz.

A Secretaria Estadual de Saúde, da gestão Pezão (PMDB), disse que todas as unidades estão “em funcionamento”, mas, devido à crise, o orçamento da pasta teve redução de R$ 1,4 bilhão neste ano.
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