Por Douglas Belchior, da Carta Capital

Em nota, o Diretório Central dos Estudantes da Unicamp detalha a perseguição racista que o estudante Guilherme Montenegro tem sofrido por parte da reitoria desta universidade. Montenegro tem sido alvo de insultos e até ameaças sem que, no entanto, a reitoria se manifeste sobre isso. Ou seja, a universidade pune um estudante negro por seu ativismo por cotas raciais e democratização da instituição e por outro, é conivente com práticas racistas em seu ambiente.

Segue abaixo o relato de Guilherme e em seguida a nota do DCE.

Por Guilherme Montenegro

Ao entrar na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) qualquer aluno se depara com a caracterização de uma universidade de ponta, grande polo científico e tecnológico brasileiro, mas ainda assim é impossível não notar a expressão da desigualdade. Ser um estudante negro em uma universidade majoritariamente branca me fez enxergar duas coisas: 1. o quanto é difícil estar em um ambiente onde nada do que se vê foi feito para você; 2. não conseguiria, enxergando essa realidade, me calar diante de tanta injustiça.

Desde o meu ingresso na Unicamp participei do movimento estudantil e pouco tempo depois do movimento negro. Achava que esse lugar de vasta produção científica seria automaticamente mais tolerante, mas o elitismo e o racismo enraizado nas instituições brasileiras e no nosso cotidiano permite absurdos como cartazes e pichações de cunho racista ou mesmo a omissão da reitoria da universidade em tratar desse tema e de outros tão importantes, como a implementação de cotas étnico-raciais, de ampliação das políticas de permanência etc. Foi a partir dessa insatisfação com a situação da universidade, que nós estudantes da Unicamp, construímos em 2016 a maior greve estudantil da história dessa instituição. No momento em que se intensificam os ataques aos de baixo pelos de cima, contar com uma mobilização dessas trouxe um sentimento progressivo de que era possível a partir desse processo alcançar um modelo de universidade mais democrático, com cotas e respeito as diferenças.

Conquistamos a realização de três audiências públicas que discutiram as cotas nas universidades e uma votação no conselho universitário que pode passar a escrever um novo capítulo da história da Unicamp, mudando essa situação de exclusão. Essas conquistas ainda assim não refletem a posição da Reitoria da Unicamp diante desse enorme movimento.

Criminalização

Em julho de 2016 fui notificado da abertura de um processo disciplinar contra mim por ter participado de uma das ações que os estudantes grevistas organizaram coletivamente. Nesse processo fui julgado arbitrariamente por uma comissão abertamente contrária a greve, que foi escolhida a dedo pela reitoria para aplicar uma punição severa contra mim de dois semestres de suspensão ou dez horas de trabalho semanal na universidade, sendo que por depender da bolsa de auxílio social já cumpro outras quinze horas semanais, ou seja, o estudante bolsista da Unicamp tem uma pena de sessenta horas a menos de estudo no mês devido a sua condição econômica.

Assim que divulgado um vídeo da ação que participei durante a greve, recebi diversas ameaças de morte de grupos de extermínio, insultos racistas e diversas manifestações pedindo minha expulsão e até meu cárcere.

Enquanto isso, a Unicamp ainda não respondeu a denúncia feita pelos estudantes através de um dossiê feito pelo DCE (Diretório Central dos Estudantes) que comprovam práticas racistas de docentes como chamar alunos negros de primatas, chamar uma manifestação que simulou a Via Crucis de terreiro de pomba-gira ou mesmo o ato de me expor nas redes sociais suscitando uma perseguição cibernética racista.

Toda essa situação evidencia aquilo que notei quando pisei na Unicamp. De fato a universidade, apesar de teoricamente pública, não foi feita para mim ou para qualquer jovem negro que sonha com outro futuro. O futuro que é concedido para nós, segundo o lugar social que ocupamos nas estatísticas é outro. Assim que divulgado um vídeo da ação que participei durante a greve, recebi diversas ameaças de morte de grupos de extermínio, insultos racistas e diversas manifestações pedindo minha expulsão e até meu cárcere. É esse o lugar que gostariam que todos os jovens negros ocupassem e em certa medida já ocupam, como é evidenciado no caso de Rafael Braga, jovem negro em situação de rua preso em 2013 por portar Pinho-Sol em uma manifestação no Rio de Janeiro. Ele que sequer estava participando das ações, foi condenado recentemente a 11 anos de prisão por tráfico de drogas, alegado pela polícia militar de forma bastante duvidosa.

Nota do DCE

A suspensão por 2 semestres do estudante negro, ativista e representante discente no CONSU Guilherme Montenegro, após exposição arbitrária na mídia e ameaças de agressão depois da greve de 2016, demonstra a disposição da reitoria para avançar nas perseguições políticas na Universidade e escancara a sua truculência institucional às portas da votação do projeto de Cotas..
O Legado da Greve de 2016

A Unicamp passou pela maior greve estudantil de sua história no ano em 2016. Esse que foium ano de intensificação dos ataques aos direitos teve, na Unicamp, um importante pólo de resistência e demonstração de forças para barrar qualquer retrocesso, bem como avançar rumo a uma universidade mais democrática e inclusiva. Essa mobilização alcançou TODAS AS UNIDADES da Unicamp, sendo que 19 destas aderiram à greve e as demais paralisaram um ou mais dias em apoio às reivindicações.

Esse processo intenso de luta que vivemos contou com a participação democrática dos estudantes em diversas assembleias, portanto foram decisões legítimas e coletivas que fizeram com que a greve fosse vitoriosa, conquistando a ampliação de 600 vagas na moradia estudantil, o aumento de 10% nas bolsas de auxílio social e a participação dos estudantes em Grupos de Trabalho institucionais que estão discutindo ampliação da moradia, permanência e cotas. Nossas vitórias por cotas e permanência foram derrotas à reitoria e ao governo Alckmin no seu projeto de universidade racista e elitista.

Na construção dessa greve, algo muito progressivo para atuação do movimento estudantil tomou conta dos debates em cada uma das unidades da Universidade. A luta pela implementação de cotas étnico-raciais não era nenhuma novidade política para as nossas pautas, já que há pelo menos três décadas já era uma urgência trazida pelo movimento negro, mas que após 2003 com a aprovação da política de cotas pela UERJ passou a ser uma discussão presente em todas as universidades públicas brasileiras.

Em 2016, fomos muito além! Os cursos, seus centros acadêmicos, o conjunto de estudantes de cada unidade em luta passa a reivindicar a aprovação imediata dessa política na Unicamp, considerando que seu modelo de ação afirmativa (PAAIS) era insuficiente para a inclusão de negros, indígenas e estudantes de baixa renda. Mesmo com a constitucionalidade das cotas julgada pelo STF em 2012, houve grande resistência a esse debate por parte de parte significativa dos docentes e do corpo administrativo, mas ainda assim conquistamos a realização de três audiências públicas que nortearam a produção de um relatório pela aprovação de um projeto cotas étnico-raciais a ser votado no Conselho Universitário (CONSU) no dia 30 de maio.

A Reitoria mostra sua cara
Encravado na sua estrutura de funcionamento e expresso no repúdio pela pauta de cotas está o racismo da Universidade de Campinas. Seja pela ausência de negros entre o corpo de estudantes ou de docentes, pela forma como a Unicamp estabelece suas relações de trabalho, ampliando a terceirização e precarizando o trabalho de uma categoria expressivamente negra.

A reitoria tem inclusive se negado a investigar denúncias de racismo feitas pelo DCE e não tem uma comissão especializada para o combate ao racismo. Essas denúncias foram aceitas pela Coordenação estadual de políticas para a população negra e indígena de São Paulo e já se iniciou a investigação em relação a alguns docentes da Unicamp que tiveram manifestações racistas, mas mesmo assim a Universidade segue calada e tentando nos calar.

Como forma de reafirmar seu autoritarismo e amedrontar os estudantes, em todo o campus se viram ações contra estudantes florescerem: o aumento na nota mínima para aprovação em diversas matérias (média 7), a abertura de processos disciplinares contra estudantes da química, física, biologia e estatística, perseguições em sala de aula e até processos judiciais contra estudantes. Coordenadores de Curso, como na Estatística e na Ciência da Computação, apenas por demonstração de força visam jubilar coletivamente dezenas de estudantes. É uma barbárie, e as instâncias de recurso como a CCG têm somente assegurado aos coordenadores sua liberdade para encerrar a vida acadêmica dos estudantes.

O Caso do Estudante Guilherme Montenegro

Essa estrutura institucional racista fica mais evidente com os desdobramentos que essa luta acarretou para o movimento estudantil, pois não satisfeitos com as vitórias e a capacidade de organização política que a greve trouxe, a Reitoria, junto a uma “força-tarefa de identificação de lideranças do movimento”, atuou na tentativa de sufocar qualquer possibilidade de luta política dos estudantes.

Para isso, se valeram de uma ação durante a greve que repercutiu na mídia através de uma exposição racista com um vídeo de 1 minuto e 30 segundos de uma ação que durou cerca de 40 minutos no cenário de uma falsa aula que desrespeitava a greve das três categorias da universidade. A partir desse fato foi aberto um processo disciplinar contra o coordenador do DCE Guilherme Montenegro, estudante negro e bolsista que lutou por cotas e permanência na greve, momento esse que desafiou não apenas a hierarquia universitária, mas o lugar do negro na sociedade brasileira. A expectativa de uma universidade BRANCA é proteger seus espaço de privilégio, negando a entrada da parcela racial que caracteriza maioria da população e coibindo a participação política de negros no espaço universitário.

Como todos os processos e ações arbitrárias da Reitoria contra os estudantes, o processo disciplinar contra Guilherme é fruto de perseguição política desde o começo — com requintes racistas da reitoria e consequências graves para o conjunto dos estudantes, por se tratar de uma “punição exemplar” — e é a única que a Reitoria vai levar a cabo com suas próprias mãos.

A comissão que julgou o caso foi um apanhado feito pela Reitoria de professores contrários a greve e contrários a manifestação de qualquer pensamento que seja diferente do seu dentro da universidade. Esse “júri de inquisição” foi questionado pelo DCE através de um pedido de nulidade, mas continuou com o consentimento do reitor. Dessa forma, garantiu o andamento desse processo que descumpre uma série de ritos burocráticos que o próprio regimento antidemocrático da Unicamp exige. O resultado do processo, publicado em Diário Oficial no dia 20 de abril não foi notificado ao Guilherme, nem à advogada do DCE, nem mesmo a qualquer outra entidade estudantil, dando acesso a grupelhos reacionários na tentativa de promover mais exposição racista.

Serão 2 semestres de suspensão acadêmica ou “a pena alternativa” de 10 horas de trabalho semanais no SAE. A Unicamp assume que vai tratar de forma truculenta os estudantes que batalharam pela Educação, dando luz verde para os institutos seguirem o exemplo da reitoria. Não contente com isso, de escárnio propõe dobrar o trabalho de um estudante que é bolsista, já penalizado com a contrapartida de trabalho para ter acesso a bolsa auxílio social. Em todas as frentes, a Universidade tenta reforçar o ônus já existente por ser um estudante pobre e negro em uma universidade branca e elitizada. O que se espera com isso é afastar mais um militante do movimento estudantil a partir de uma punição injusta.

Durante a greve a Reitoria junto às diretorias escondeu outros processos em vias de se concretizar, trazendo a ideia de que a punição seria apenas contra um estudante, mas num processo coletivo, qualquer perseguição é ao conjunto e não admitiremos andamento de nenhum outro processo que ataca a liberdade e autonomia do movimento estudantil. Essa decisão também se trata de uma “punição exemplar”, visando a intimidação dos estudantes e o avanço de outros processos de perseguição já abertos.
Quem luta por Educação não merece punição!

Nenhum estudante a menos!
As decorrências dessa punição para o conjunto dos estudantes alteram qualquer possibilidade de diálogo democrático e participação nas discussões da comunidade universitária. A suspensão proposta afasta automaticamente um dos representantes discentes do Conselho Universitário às vésperas da votação que decidirá a implementação de cotas, ou seja, uma ofensiva direta a esse projeto que foi pauta da greve de 2016 e que, haja vista sua ampla aprovação em assembleias, tem amplo apoio dos estudantes..

Chamamos todos os estudantes, as entidades estudantis, sindicais, docentes, figuras e movimentos sociais a resistência frente esses ataques e à perseguição racista de Guilherme Montenegro, a assinatura e divulgação desta nota, bem como a participação nas atividades que serão divulgadas nos próximos dias para reverter essa punição e bloquear o avanço dos outros processos em andamento nos institutos. É necessário avançar numa agenda de lutas em todos os institutos, com o levantamento dos casos de sindicância como também de jubilamentos compulsórios. Mostraremos que o combate ao racismo e o avanço da igualdade social e racial através das cotas não combina com a punição a um estudante negro ou qualquer represália a quem luta pela Educação.
Reivindicamos:
– Implementação das cotas étnico-raciais
– Revogação imediata da punição racista
– Suspensão de todos os processos disciplinares, sindicâncias e similares contra os estudantes grevistas
– Acolhimento das denúncias de racismo praticado por docentes apresentadas no dossiê produzido pelo DCE durante a greve