Do Facebook de Simone G de Lima

Eu li o relatório da operação carne fraca todo, as 353 páginas. Disponibilizei aqui porque, realmente, nossa imprensa é muito fraca, ainda mais quando se trata de traduzir tecnicalidades para o público leigo. Me irrito até não poder mais quando leio jornalismo que vai discutir leishmaniose ou zika, por exemplo. Mas então, vamos lá, bem resumidamente, o que me chamou mais atenção:

– Não sei de onde veio a história do papelão e tô com preguiça, agora, de saber. Mas não tem uma menção a papelão nenhum no relatório. Ou seja, parem de falar de papelão, por favor.

– O relatório faz sim referência, erradamente, a ácido ascórbico como se fosse carcinogênico ( na verdade, ele repete uma alegação de uma pessoa a respeito) . Ácido ascórbico é usado legalmente como conservante.
Ah, então quer dizer que foi tudo exagero e tá tudo lindo com a carne?

Não, gente.

Tá tudo bem com carne se ela está no corpo do ser vivo que é dono daquela carne.

Mas mesmo abstraindo do problema de tomar a carne alheia para si, vamos ver o que é preocupante no relatório.

– O relatório mostra um esquema que foi denunciado por UM funcionário do MAPA no Paraná, que abriu a boca após ter sido perseguido por não concordar com o esquema de subornos de fiscais por frigoríficos. Quando a polícia investiga o caso, uma coisa vai levando a outra, e o que começa como uma denúncia bem circunscrita de um pedacinho de um estado, vai ficando claro que é todo um esquema nacional de corrupção de fiscais por diversos frigoríficos , desde bem pequenos até os gigantes globais BRF ( Sadia, Perdigão e diversas subsidiárias) e JBS/ Friboi, maior holding mundial da indústria da carne. (Ou seja, é simplesmente inverídico alegar que todos os frigoríficos foram inspecionados mas só acharam problemas nesses. O que a investigação mostra é que achou MUITO mais problema em mais estados do que quando começou).

– O problema do ácido ascórbico não é ele ser usado como conservante e sim ele ser usado para MASCARAR que um lote de carne estava vencido.

– O problema de uso de cabeça de porco ( as pessoas ficam com nojo, mas esse não é o problema legal) é que não é permitido usar em processados a menos que isso esteja claro. É mais uma questão de fraude do consumidor.

– Há gravações de pessoas falando na maior naturalidade sobre como aproveitar, em embutidos, carne vencida há TRÊS MESES.

– O problema da salmonellose maior não é de que a carne tenha chegado na itália contaminada- ela foi devolvida. O problema são os funcionários gravados discutindo como iriam “reutilizar”, DEPOIS DE CHEGAR DE VOLTA , no porto, aqui. Cogitam usar em ração ou em embutido, daí dias depois dizem que já venderam por ali mesmo.

– São impactantes as gravações mostrando como se afastavam diversos fiscais que faziam o seu trabalho de maneira séria. Tem uma sequência toda de empresários falando de uma médica veterinária que é criteriosa nos exames laboratoriais, a chamando de vaca, puta* , etc, e discutindo tecnicamente o que fazer com os produtos para burlar os exames.
(*valhei-nos Carol Adams)

– A BRF simplesmente mantinha uma funcionária DENTRO DO MAPA com escrivaninha, computador, login e senha do sistema para emitir certificados. Apenas.

– O uso , na produção da carne e subprodutos, de animais que já chegam no abatedouro mortos por conta do transporte. Mesmo se abstraíssemos do que isso revela da crueldade no transporte desses animais, é algo que é proibido por normas sanitárias, porque desde o momento da morte já começa a decomposição, ou seja, o animal está na estrada decompondo e sua carne ainda vai ser usada horas/ dias depois para o processamento e venda.

– Algo grave que NINGUEM parece ter reportado: a alta funcionária do MAPA “ganhou” uma passagem da BRF pra Europa para aprender sobre abate em maiores velocidades do que as permitidas no Brasil. Voltou da viagem, puf, a norma do Brasil sobre velocidade de abate permitiu abate 20% mais rápido. Eu sei que isso é super técnico, mas o que ocorre é que mundialmente tem uma crítica a sistemas que aumentam a velocidade de abate de frangos tanto porque uma parcela vai entrar vivo no banho que escalda ( ou seja, vai ser fervido VIVO) quanto por conta de segurança do trabalhador. No relatório tão lá correndo para não ficar na cara que uma empresa privada influenciou o MAPA a mudar uma norma.

Há outras questões que não tenho tempo de relatar, mas queria compartilhar e dizer ainda que como alguem que é amiga de veterinários e estudantes de veterinária e alguem que estuda acompanha as investigações de irregularidades em matadouros em todo o mundo, nada disso propriamente me supreendeu. Na verdade, a crueldade da indústria da carne é muito mais grave do que tudo isso. Mas é importante saber o que se come, e é importante saber que o grande compromisso dessa indústria é com o seu lucro. Também não é grande novidade. Mas deveria ser nosso direito saber de onde vem a nossa comida. E aí usar essas informações para escolhas do que comer.

PS1 : acho curioso as pessoas terem nojo de papelão mas não de sangue, músculo, tecido.
PS 2: acho curioso o escândalo de acharem que tem substância carcinogênica adicionada a embutidos quando embutidos , por si só, já foram listados oficialmente por autoridades médicas mundiais como carcinógenos. Ou seja, não precisa juntar nada não, gente. Já é carcinogênico.

Edição 1: link do relatório: http://politica.estadao.com.br/…/DECIS%C3%83O-PARTE-1.pdf.c…

Edição2 : como algumas pessoas questionaram a classificação de embutidos como carcinogênicos, compartilho o link: A inclusão foi resultado de estudos pela Associação Internacional de Pesquisa em Câncer – IARC- em 2015.

Clique para acessar o pr240_E.pdf

Edição 3: Pra quem se interessa no tratamento dos animais pela pecuária nacional :
http://reporterbrasil.org.br/…/choques-socos-e-pauladas-a-…/

Pra quem se interessa pelo tratamento dos humanos pela pecuária nacional: https://www.youtube.com/watch?v=imKw_sbfaf0