Por João Neves

Benjamin, se não me engano, enquanto você olhava para o capitalismo no começo do século XX, foi o literato Franz Kafka que lhe auxiliou, durante suas interpretações, a compreender as relações sociais que se desenvolviam naqueles anos.

O Sr. K, em O processo, lhe deixou ver, de alguma modo, como as portas de entrada para o fascismo já estavam anunciadas nas repartições da burocracia. Afinal, como podemos ler, o jovem personagem kafkiniano era estrangulado enquanto se movia nos labirínticos espaços da vida moderna. Benjamin, diga a verdade.

– Você percebeu não só as formas de narrar nossa enfadonha vida moderna, mas, capturado pela capacidade literária de Kafka, você também conseguiu apreender os débitos gerados e compartilhados por todos em nossa sociedade capitalista.

Quase 92 anos após a escrita de O processo – Pasme meu amigo! – ainda somos assombrados por vozes irreconhecíveis de corpos desconhecidos que nos chega e nos encaminha à morte:

– Bom dia, Sr. Blake. Eu faço as avaliações para o Auxílio Financeiro ao Trabalhador. […] O senhor consegue andar mais de 50 metros? Consegue erguer o braço como se fosse colocar algo no bolso da camisa?

Daniel Blake, tenta acessar o serviço de aposentadoria, no entanto, é barrado, ou melhor, engolido, dia após dia, pelos papeis, máquinas, números, códigos, chips, digitais, senhas, etc… Infinitos incompreensíveis que se somam e contingenciam uma dívida impagável que, caso tenhamos filhos ou netos, percorrerá gerações.

Benjamin, o capitalismo se tornou isso! Para deixar mais claro o que quero lhe mostrar em nossas conversações, trago o texto de Deleuze, um filósofo que também muito lhe prestigia, no qual, em 1990, escreveu um curto texto para L’Autre Journal dizendo que vivíamos, desde os tempos Kafkinianos, uma transição da sociedades disciplinares para a sociedade de controle. Ele conta que

nas sociedades da disciplinas não se parava de recomeçar (das escola à caserna, da caserna à fabrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador social. Kafka, que já se instalava no cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu O processo as formas jurídicas mais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares (entre dois confinamentos), a moratória ilimitada das sociedades de controle (em variação contínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar em outro.

Gilles Deleuze. Post-Scriptum

Sobre as sociedades de controle: In DELEUZE, G. Conversações. Ed.34.

O filme “I, Daniel Blake”(2016), mostra as consequência desse misto de disciplina e controle que alimenta nossas relações. O diretor Ken Loach, através de planos simples, e uma surpreendente técnica de filmagem com não atores, nos leva as entranhas do capital – (Benjamin, o sábio diretor usa uma habilidade, reivindicada pelos programas de televisão que fazem desde de pegadinhas até pesquisas de opinião com pessoas em sua correria cotidiana pelas ruas da cidade, para inserir reações “realistas” nas cenas do filme. – Quando tiver tempo, veja a cena em que Daniel Blake pixa, revoltado, o muro do repartimento público; quando saí a procura de emprego; ou quando trata com alguém fora do elenco protagonista. As cenas são incríveis, temos a impressão, nessas cenas em especial, que há uma câmera escondida captando reações que serão retrabalhadas para narrativa fílmica. Esse jogo na cena e depois na imagem demonstra que não precisamos de um ambiente de controle, com direção e roteiros pré guiados, para alcançamos a sociedade de controle, basta ir as ruas meu camarada…) O filme é simples, por isso emocionante.

No Brasil será uma ótima ferramenta para nós cineclubistas usarmos enquanto falamos da “Reforma da Previdência” – “Será que só isso que ele nos tem a dizer?” (Questões para se pensar em uma terceira carta). Por hora, digo que a Daniel Blake também ajuda a compreender os motivos pelo qual levaram Matias a querer se jogar “do alto, bem lá do alto do prédio do BANESPA” para “poder cair, cair e poder, morrer, morrer e até esmagar algum transeunte”, pois ele quer “companhiaaaaaaaaaaaa…No vazio da morte”.

Você deve estar me perguntando quem é Matias…

Ouça o Disco, recém lançado por Kiko Dinucci, Cortes Curtos. Ouça com maior atenção a 13º cena intitulada “Vazio da Morte”, acho que isso fará sentido…

Para não dizer que falei da flores… As ruas hoje estão sendo ocupadas!

http://www.revistaforum.com.br/2017/03/15/album-de-fotos-das-manifestacoes-em-todo-o-brasil/

Ministério da Fazenda Ocupado!

https://www.brasildefato.com.br/2017/03/15/movimentos-populares-ocupam-ministerio-da-fazenda-contra-reforma-da-previdencia/

João Augusto Neves Pires é historiador e Membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.