Por Luís Fernando Praga

Solicito às pessoas plenamente satisfeitas com a sociedade que não ultrapassem os limites do primeiro parágrafo.

Pronto, você veio! Sua insatisfação é a única força capaz de transformar sua situação desconfortável.

Você pode, sozinho com sua insatisfação, mudar sua forma de ver o mundo, ser mais positivo, melhorar sua vida e encontrar uma nova zona de conforto, até que aquela angústia comece a lhe roer por dentro novamente, porque não se faz transformação social sozinho, é preciso união.

Então pense em seus interesses, forme um grupo afim e lutem juntos! Vocês poderão atingir objetivos que lhe aliviem o peso de viver e anestesiem a dor da angústia; ela, porém, continuará carcomendo, caso os interesses do seu grupinho não sejam as reais prioridades da sociedade.

Sim, pra sociedade ser harmônica, justa e saudável para todos, inclusive a você e seu grupinho, há prioridades.

Imagine que você tem um bom emprego, uma família e trabalha bastante para finalmente comprar sua casa própria ou trocar de carro, ir pra Disney ou Paris. Entretanto, um de seus filhos adoece gravemente e o tratamento é oneroso.

As pessoas que deixarão o filho morrer e continuarão acumulando recursos pra ir à Disney já podem interromper a leitura e brincar de outra coisa, obrigado.

Oba, então você não ficaria em paz com sua consciência caso seu filho morresse de uma doença curável porque você teve outras prioridades. Que bom, salvar a vida também me parece prioritário, mesmo que algum amigo lhe diga que não, que a Disney é legal demais, que seu filho é um vagabundo que está se fazendo de vítima e não merece tanto sacrifício.

Nossa, que amigo insensível à dor alheia, até injusto, eu diria, mas vamos lá…

O mundo, este lugar onde vivemos é como se fosse a nossa casa; como se fosse, não: ele literalmente é a casa de todos nós e dispõe de recursos limitados. Desejar acumular mais recursos enquanto alguém que divide o mundo com você morre de alguma doença curável, como a fome, por exemplo, é agir como aquele seu amigo.

Nossa vaidade pessoal e a escravidão ao consumismo, um vício estimulado pelo sistema que dita as regras do mundo, não ajudam em nada a resolver nossas prioridades sociais. O fato de entregarmos nossas vidas a esta ilusão e não ao que é naturalmente prioritário nos angustia implacavelmente e é o íntimo responsável por nossa insatisfação com a sociedade.

O mundo é nossa sociedade, nosso grande grupinho e apenas 1% de sua população detém a mesma riqueza que os outros 99%. Há 8 (oito) seres humanos em nosso grupo cuja fortuna se iguala ao patrimônio da metade de nossa população. Sim, 8 possuem o mesmo que 3.600.000.000 (3,6 bilhões) de pessoas. Um quarto da população mundial vive abaixo da linha da pobreza.

Se o mundo fosse dividido em casas com famílias de 4 indivíduos, em cada casa haveria um membro passando fome e privações desumanas. Mesmo assim, alguns deixariam que esse membro da família morresse à míngua, apodrecendo ao seu lado e continuariam indo à Disney, porque lá é legal demais.

A ilusão de que você se assemelha aos 8 superafortunados mais que aos bilhões de miseráveis que morrem de fome ao nosso lado sem que façamos nada é implantada em nossa mente de forma proposital. Você não pode se enxergar como povo, não pode se aliar a seus irmãos famintos, não pode desejar uma sociedade justa mais que a um carro novo, não pode enxergar que suas merecidas férias na Disney são uma esmola, uma migalha atirada pelos seus senhores. Você está a 1 milímetro dos miseráveis e a 1 ano luz de famílias como a Rothschild, por exemplo. Você ajuda a manter as grandes fortunas e nunca chegará nem perto delas, tanto quanto o operário do chão de fábrica, o lixeiro e o pedreiro, mas você não pode ver isso, pois o sistema só se mantém se continuarmos cegos.

Se enxergássemos e priorizássemos diferente poderíamos dar a nossas ocupações um sentido bem mais nobre.

A polarização social que o mundo vive hoje não é natural, é plantada à custa de desinformação e preconceito para que o sistema não vá à ruína. Existe uma indústria especializada em nos desunir, que envolve mídia, política, religião, trabalho, repressão, manipulação, chantagem e medo.

Acontece como quando nós, cruelmente, condicionamos um elefante, desde filhote, preso a correntes; ele tenta escapar em busca das longas caminhadas e da liberdade impregnadas em sua herança genética, mas jamais consegue. Tenta e sente dor, tenta e sofre por meses, até que o filhotinho aprende ser incapaz de se libertar das amarras e que é inútil lutar. Agora adulto, preso a um mísero barbante, conforma-se com sua condição de cativo e aguarda o alimento que o mantém vivo e traz o conforto necessário para não “enlouquecer” nem se lembrar de que é um elefante poderoso e necessita de liberdade.

Por tudo isso, apenas o povo, aquele que se entende oprimido pelo sistema, tem condições de promover a transformação social capaz de curar de vez aquela nossa angústia. Por tudo isso é que resgatar a dignidade dos miseráveis e excluídos é a prioridade do mundo.

Se o sistema não dos permite enxergar, muito menos agir a respeito, a saída é romper. E romper dói!

Dispensadas do texto, agora, as pessoas que optarem pela dor crônica e angustiante da inércia à dor inevitável e gloriosa da mudança.

Bem, se você ficou, daqui pra frente vamos nos ver nas pelas e lutar juntos a boa luta.

Sim, precisaremos lutar, mas lutar pelo esclarecimento de todos! Nossa luta não consiste em matar as 8 grandes fortunas do Planeta ou o 1% mais rico e brigar para ocupar o espaço deixado por eles, mas em não nos sujeitarmos mais a eles, em demonstrar que não precisamos deles nos explorando e que não queremos mais o mundo como é.

Para que haja a união necessária a esta ruptura dependemos também de abolir alguns hábitos que nos desagregam; por exemplo:

Condenar alguém por coação midiática, com aquela certeza inquestionável, como fizeram a um operário, nordestino, analfabeto e nascido na miséria, sem que haja provas que o incriminem é agir preconceituosamente. Não é com pessoas preconceituosas que conseguiremos mudar o mundo.

Instigar nosso sistema judiciário corrompido e historicamente muito bom em prender nordestinos, pobres e pretos, a condenar sem provas é dar carta branca para que ele continue sendo injusto e seletivo e não é isto que transformará nossa sociedade.

Não há amparo ou acolhimento injustos, desde que possam ser estendidos a todos, já as condenações tendem a contemplar interesses menores e mostram-se historicamente equivocadas e tendenciosas. O tal operário pode até ser culpado, todo mundo pode, mas que se investigue com idoneidade, pois ninguém deve ser odiado; somos todos iguais, lembra?

Impor um deus que reprova atitudes humanas, condena e manda pro inferno gente que, em outros países, onde há maior justiça social e onde deus provavelmente não é tão intolerante, são cidadãos produtivos e tratados respeitosamente como iguais, é uma alienação preconceituosa que gera ódio e desagregação social. Não é esse tipo de fanático que irá compor uma sociedade justa.

Devemos lutar por nosso direito de agir e pensar diferente deles, de viver sem medos que já superamos. Devemos estimular ao questionamento e não à submissão. Devemos lutar por uma educação que liberte, não repetir dogmas que aprisionam. Devemos transmitir exemplos diferentes dos deles. Devemos amar e aprender com o amor. Não questionar as próprias certezas é se entender como infalível, como alguém que não tem mais ignorâncias a elucidar, é prepotência e arrogância e não é de gente prepotente e arrogante que o mundo melhor precisa.

Imaginar que o mundo tem cerca de um quarto de sua população vivendo em condições miseráveis e acreditar que essas pessoas optaram por sentir a dor da fome, gerada por ulcerações profundas em estômagos vazios por períodos prolongados ou que essas pessoas tenham optado por viver em ribanceiras, sem dignidade, expostos às piores violências, em condições insalubres a que ninguém em sã consciência se sujeitaria, vivendo de lixo até que a morte as vença precocemente e que optaram por isso apenas pelo prazer da vagabundagem, é subestimar o ser humano, é alimentar e blindar dentro de si uma certeza mentirosa, cruel e conveniente para, a partir dela, justificar uma vida repleta de decisões desumanas, do tipo “seu filho é vitimista, não merece seu esforço” e espalhar a discriminação pelo mundo. Não é de pessoas apegadas à ignorância que uma sociedade evoluída precisa.

Aquele que pensa fazer parte da elite dominante por mérito e que precisa manter afastados de si os miseráveis, os famintos, os escravizados e os vagabundos é apenas um subornado pelo sistema, um alienado cuja ignorância estaciona a evolução humana e não devemos levar este tipo de ignorância para a sociedade que sonhamos.

A união por uma sociedade justa implica em estar unido a quem mais carece de justiça; e não, aos que sobrevivem graças à injustiça. A união por uma sociedade justa implica em amparar e resgatar os membros da base pisoteada da pirâmide e não, em condená-los a continuar ali. A união da sociedade, enquanto vivermos numa democracia, depende do apoio a políticas públicas inclusivas e de não se colocar ainda mais peso sobre as costas de quem já nasce carregando as injustiças do mundo.

Não dependemos de consertar ninguém! Dependemos de construir com quem deseja construir! Dependemos de criar oásis de liberdade, solidariedade e tolerância, autossuficientes e independentes do sistema e, a partir deles, irradiar amor e conhecimento sobre as trevas do ódio e das mentiras mantenedoras do sistema.

O poder dos poderosos, aquele que provém do acúmulo de recursos, do saque às riquezas do Planeta e da escravidão humana não nos interessa, já nos é repugnante! Não queremos competir pra ter o que outros jamais terão, mas cooperar para sermos o máximo que pudermos como indivíduos e como sociedade.

A união por uma sociedade justa implica em romper o fino barbante que nos priva da liberdade de viver e de saber, intimamente, quem realmente somos. Sejamos uma manada, livre, poderosa e com líderes naturais, não um enorme rebanho submisso a pastores que se aproveitam de nós.