Por João Neves

Antes de apresentar o conto “O vestido de noiva”, gostaria de dizer, e agradecer, os movimentos da vida que nos fazem esbarrar com genialidades pelo caminho. Dito isso, compartilho, na coluna “Entre Vozes: Caminhos estéticos e políticos” o pequeno conto de Samyra Charpinel. Deixo aqui os aromas de uma capixaba poetiza de sabores especiais. Boa leitura.

O Vestido de Noiva, por Samyra Charpinel

É noite na casa de Mocinha, as fracas lâmpadas, novidade naquelas bandas, causam espanto, admiração e iluminam os sonhos das crianças. Todo o povo que Deus ali esqueceu se juntou para ver a moça. Era de estatura pequena e morena, um corpo magro com grandes olhos castanhos, mãos fortes de dedos longos, onde um dia usara um anel. A moça era a alegria da casa, sempre zanzando seu corpo miúdo e risonho por todos os lados. Mocinha cozinhava, limpava, lavava e engomava. Sua vozinha cantando seus amores e suas dores, aconchegava a casa da dureza e secura lá de fora. Queria casar. De vestido branco e rendado.

As costureiras trabalham sem descanso. Mocinha está só no quarto ao lado, de lá só sairá com o vestido.

O anel em sua mão lhe trouxera promessas amorosas, de uma vida doce e difícil. Abelardo tinha os bolsos vazios e o tempo cheio. O trabalho era sempre duro e sempre muito. Gostar de filha de patrão não era boa coisa. Mas ele tinha coragem. E ternura. Deu um anel à moça, e com ele o seu amor.

Agora toda a gente aguarda ansiosa, prestando muita atenção ao barulho das máquinas de costura, sentem no ar o cheiro de muitos jasmins, que jamais lhes sairá da memória.

O patriarca era sempre duro, sempre altivo. Filha sua não se casaria para passar fome ao lado de peão. Morria solteira. Mocinha estava fazendo sabão. O pai veio de longe, veio da roça. Parou. Olhou a moça. Viu o anel.

– Ou tira o anel do dedo, ou eu tiro o dedo da sua mão.

Ela sabia que o pai não fazia graça. Falava a sério. Escorregou o anel do dedo. Entregou. Molhadas suas mãos. Molhado seu rosto. Tristes seus pensamentos.

– Nenhum outro anel vai servir nesse dedo.

A cozinha fervilha, todas as mulheres ajudam, de lá saem brevidades, biscoitos de polvilho, broas de fubá, angu frito, leite para confortar as crianças, café para despertar os adultos – fraco e doce, para ser tomado muito e com vagar. A aguardente na dispensa não inebria tanto quanto o jasmim que impregna a casa.

Moça adulta que não casa vira Mocinha. Continuou o trabalho de todo dia. Cuidava dos afilhados, dos filhos dos outros – os que não tinha e nem teria. Sua voz se calou aos poucos. Sua alegria não podia mais ser ouvida zanzando pela casa. Mocinha tinha fome, mas já não podia comer. Seu corpo miúdo ficou ainda menor. Seus olhos tristes ficaram muito grandes para os buracos que ocupavam.

O vestido já vai tomando forma, os bordados e as rendas já são pregados. As costureiras trabalham em silêncio, como que alheias à algazarra da casa. As crianças catam tocos de cigarro para fumar escondidas debaixo do assoalho. As mulheres se perguntam como será o vestido, de qual modelo? Onde as rendas? O tecido que o pai mandou trazer da cidade. Precisa ser terminado logo, a noite já vai alta e todos querem ver Mocinha!

A moça é enfim despida da fétida camisola, e colocada em seu belo vestido de noiva, cosido inteiro em uma única noite de chuva. Gasta-se muito jasmim para perfumá-la, para tornar seu hálito doce e suportável. Seu buquê de rosas brancas lhe envolve todo o corpo. O cheiro doce das flores toma conta do quarto, da sala, da casa inteira, entorna pelo terreiro até se entranhar na alma de toda a gente que sentia finalmente a chegada de Mocinha, a noiva em seu alvéolo de madeira e rosas brancas.

Mocinha pode então ser vista por todos em seu vestido de noiva, que somente a terra lhe vai despir. Mocinha pode ser então sentida pela casa, com seu perfume de morte e jasmim. Ninguém fala mais, todos compartilham o silêncio da moça. Ninguém come mais, todos compartilham a fome da moça. Ninguém mais admira a beleza das lâmpadas elétricas, que a escuridão dos olhos fechados da moça torna irreal. Apenas as velas que iluminam seu corpo são vistas.

O pai e o noivo pobre que não foi, estão cada um de um lado de Mocinha. O noivo está rígido e encara o pai. Mocinha não se casou. Mocinha não teve vida pobre ao lado de um peão. A doença a atacou como um par de ásperas mãos que aos poucos lhe apertaram a garganta. Lá ficaram presas todas as palavras de ódio e amor nunca ditas. Mocinha morreu de fome em frente à farta mesa paterna.