Por João Neves

Para compreendermos os acontecimentos que inauguraram o ano de 2017 proponho revisitar as batidas do funk. O gênero musical, como se pode escutar nos últimos dias, serviu, mais uma vez, como forma estética para expressar as sensibilidades dos corpos mutilados pelos dispositivos punitivos de nossa sociedade.

Dentre os diferentes compassos da partitura política e econômica, composta durante o processo de redemocratização no Brasil na década de 1990, alguns foram orquestrados pela música funk. Uma escuta cautelosa das canções desse gênero musical pode nos revelar, portanto, as sensibilidades daqueles(as) que se encontravam marginalizados(as) do receituário neoliberal adotado no país. Fica explícito, a cada batida ouvida, como o funk vocaliza experiências traumáticas vivenciadas por jovens, em sua maioria negros, nas periferias das grandes cidades brasileiras.

O “Rap das armas”, por exemplo, composta originalmente em 1992 por MC Júnior e Leonardo, com mixagem do DJ Malboro, fazia referências ao estado de guerra vivenciado na cidade do Rio de Janeiro no início daquela década. Os irmãos Júnior e Leonardo, nascidos na favela da Rocinha, trouxeram para essa produção, da mesma maneira que os compositores de samba nos anos de 1930, as experiências dos moradores das regiões pobres da cidade carioca. Registrou-se nessa canção os sentimentos daqueles que (sobre)viviam as realidades precárias nas comunidades empobrecidas, onde, não por acaso, se reorganizavam, no contexto político e econômico das décadas de 1980 e 1990, os agentes responsáveis pelo tráfico de drogas no país.

Após apontar o lugar de enunciação e argumentarem que há problemas a serem repensados sobre a “cidade maravilhosa”, os MC’s imitam a sonoridade produzida por tiros e granadas para nos ambientar, mais uma vez, com o tema que será tratado ao longo da canção. A onomatopeia “Parapapapa pá, pá, pá, pá, pá, pá. Parapapapa pá, pá, pá, pá, pá, pá. Papará, Papará, clack boom” – também um recurso comum nas narrativas populares que procuram representar as sonoridades do cotidiano – torna-se marca principal da música. O refrão com letra é substituído por elocuções silábicas.

O efeito de tiros e a explosão de granada nos lembra, enquanto ouvimos a letra, a arquitetura sonora que compunha, conforme documenta João Moreira Salles e Kátia Lund em “Notícia de uma guerra particular”¹, as favelas cariocas na década de 1990. Essas sonoridades seguem ao fundo das batidas dos graves e reaparece com maior ênfase em momentos específicos da canção.
Feita a introdução, os símbolos da violência instaurado nas comunidades pobres naqueles anos são apresentados pelos MC’s:

Metralhadora AR-15 e muito oitão
A Intratec com disposição
Tem a super 12 de repetição
45 que é um pistolão
FMK3, M-16
A Pistouzi eu vou dizer para vocês
Tem 765, 762
E o fuzil dá de 2 em 2.²

A performance funk, nesse sentido, narra, ao mesmo tempo em que organizam, as experiências e os sentimentos pulsantes nas “quebradas” e, mostram também, como agem os jogos discursivos da máquina de guerra do capitalismo contemporâneo. Os territórios e os sujeitos são minados, dia após dia, como podemos ouvir, por discursos que privilegiam a guerra.

A segunda versão da canção “Rap das armas” – talvez mais conhecida por servir de trilha sonora nos filmes Tropa de Elite 1 e 2 de José Padilha –, feita em meados de 1994 por MC’s Cidinho e Doca, nos recoloca essas problemáticas. Os MC’s retrabalharam a canção dos irmãos Júnior e Leonardo, recontextualizaram alguns dos sentidos e trouxeram mais elementos para representar o estado de sítio na cidade do Rio de Janeiro naqueles anos:

Morro do Dendê é ruim de invadir
Nóis, com os alemão, vamos se divertir
Porque no Dendê vô te dizer como é que é
Aqui não tem mole nem pra DRE
Pra subir aqui no morro até a BOPE treme
Não tem mole pro exército civil, nem pra PM
Eu dou o maior conceito para os amigos meus
Mas morro do Dendê também é terra de Deus.³

A versão, que se tornou proibida logo após sua divulgação, dá ênfase aos conflitos entre as facções do Rio de Janeiro e os aparatos de guerra organizados pelo poder militar estatal. Nessa performance, diferente de sua versão inicial, aparecem os principais aparelhos de Estado presentes no cotidiano das periferias do Rio de Janeiro em meados da década de 1990, a Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) e o Batalhão de Operação Policiais Especiais (BOPE). Também lança luz sobre os sujeitos que combatiam no campo de batalha das favelas, a Polícia Militar (PM), o exército civil, os moradores do morro do Dendê, Comando Vermelho e os Alemão – Terceiro Comando.

A letra mostra as movimentações de grupos armados nas favelas. O linguajar relembra as ordens de defesa e ataque no campo de guerra. Além disso, fica explícito alguns dos armamentos usados ou, pelo menos, desejado, na guerra cotidiana. Mostra também a maneira pela qual estes instrumentos são incorporados por jovens que trabalham para o tráfico de drogas. A performance cria uma imagem perturbadora, em que corpos se misturam a máquinas de guerra.

Mãos, braços e cabeças tornaram-se, nesse universo belicoso, conforme demonstra os versos a seguir, componentes de engenharias criadas para matar.
Vem um de AR-15 e outro de 12 na mão
Vem mais dois de pistola e outro com 2 oitão.
Um vai de URU na frente, escoltando o camburão
Tem mais dois na retaguarda, mas tão de Glock na mão
Amigos que eu não esqueço, nem deixo pra depois

Lá vem dois irmãozinhos de 762
Dando tiro pro alto só pra fazer teste
De INA-Ingratek, Pisto-UZI ou de Winchester
É que eles são bandido ruim, e ninguém trabalha
De AK-47 e na outra mão a metralha

Esse rap é maneiro, eu digo pra vocês
Quem é aqueles cara de M-16
A vizinhança dessa massa já diz que não aguenta
Nas entradas da favela já tem ponto 50.

E se tu toma um pá, será que você grita
Seja de ponto 50 ou então de ponto 30
Mas se for Alemão eu não deixo pra amanhã
Acabo com o safado dou-lhe um tiro de Pazã

Porque esses Alemão são tudo safado
Vem de garrucha velha dá dois tiro e sai voado
E se não for de revólver eu quebro na porrada
E finalizo o rap detonando de granada

Novamente, como na antiga versão do “Rap das armas”, o Volt Mix entoava a base rítmica da canção. Entre os graves e loops, os cancionistas nos inserem no estado de sítio vivenciado nos morros cariocas. Essa performance se configura, nesse sentido, enquanto uma manifestação do urbanismo militar que, conforme indica Graham, se “imiscuía a filões militarizados da cultura popular, urbana, eletrônica e material”4. Quer dizer, os símbolos e os materiais usados em grandes conflitos armamentísticos passaram a compor, naquela década de 1990, a cultura popular, que convivia e assimilava as formas da guerra.

Estamos diante das primeiras manifestações sonoras produzidas pelo “urbicídio”, ou melhor, pelo genocídio urbano, promovido pelo “urbanismo militar” orquestrado no seio das políticas neoliberais no Brasil.

Ambas as performances condensam sentimentos provocados por um contexto em que o país se deparava com os resultados do receituário neoliberal. Víamos, naqueles anos, agentes engravatados promovendo esforços estupidificantes para solucionar questões sociais, as quais foram produzidas historicamente em um país forjado culturalmente pelas relações escravocratas e comandado por oligarquias autoritárias.

Diante desse cenário, a operação cirúrgica, aconselhada pelos entusiastas do neoliberalismo, agravou a hemorragia, causando o descontrole da violência e da guerra cotidiana. São exemplos clássicos de genocídios: as chacinas da Candelária e Vigário Geral5 no Rio de Janeiro e a matança ocorrida no centro de detenção Carandiru na cidade de São Paulo. O forte poder financeiro e organizacional das facções criminosas instaladas nas periferias das grandes cidades, bem como o Estado beligerante reforçado com o investimento público no desenvolvimento militar das polícias, ocorreram no desenrolar das políticas neoliberais. Estes dispositivos, desde então, tornaram-se vetores de produção de subjetividades.

No dia 1º de Janeiro de 2017, dias após a aprovação do Proposta de Emenda Constitucional 241 (ou 55), outra canção no ritmo funk foi composta.

Aqui é o crime organizado tá tudo monitorado
fechado aos aliado, represento o nosso estado
decretado o poder a ordem vou te dizer
foi batido o martelo pra torar os PCC
o Comando é um só e tá daquele jeito
representa a FDN junto ao Comando Vermelho
pega a visão é a conexão, tomamos de assalto todo o cadeião
representamos de tal forma e a massa reunida
para quem pagou de doído sente o poder da família
aqueles que conspirou traíram a família
o bagulho foi mais doido, se batendo igual galinha
foi troca de tiro, polícia não peitou
a bala comendo solto e a Rocam recuou
Estava tudo dominado a cadeia em nossas mãos
e os presos tudo decapitado na quadro do cadeião

¹ NOTICIAS de uma guerra particular. Direção: João Moreira Salles; Kátia Lund. Rio de Janeiro: Vídeo Filmes, 1999.

² Rap das Armas. Mc Júnior e Leonardo. LP De baile em baile. Brasil: Sony Music, 1995.
Esta canção está entre os primeiros funk a fazerem menção a armas com alto calibre e a evidenciarem o poder armamentístico presente nas favelas do Rio de Janeiro, nessa estrofe, por exemplo, são citadas AR-15, Intratec, Super 12, 45, FMK3, M-16, Pistouzi, 765, 762 e Fuzil que são denominações de máquinas normalmente usadas em guerras de grande poder de fogo.

³ Rap das Armas. MC Cidinho e Doca. s./ind,1994.

4 GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016

5 Ambos os episódios ocorreram no ano de 1993 na cidade do Rio de Janeiro. A Chacina da Candelária, foi um massacre em que foram mortos oito jovens moradores de ruas por polícias militares. A Chacina de Vigário Geral, por sua vez, representa a morte de pessoas, moradoras dessa favela na Zona Norte do Rio de Janeiro, por um grupo de extermínio em que participavam polícias militares.

6 O massacre da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, ocorreu no ano de 1992 e deixou 111 mortos. O conflito iniciou para conter uma rebelião no presídio e acabou com um dos maiores derramamentos de sangue no país.

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Agradeço enormemente a meu amigo e guru intelectual Raphael Machado. Sua leitura crítica do artigo acadêmico que aprofunda as reflexões sintetizadas nas linhas anteriores foram essenciais para o aperfeiçoamento de algumas ideias. Espero que nossos caminhos e devaneios continue se encontrando por aí!

João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.