O professor e pesquisador da Unicamp, Ricardo Antunes, um dos mais importantes estudiosos do trabalho, escreveu um artigo em que mostra a devastação no mundo do trabalho provocada pelo governo Temer. O professor aborda as últimas décadas dos governos brasileiros, o golpe parlamentar, e a nova configuração do governo. Veja abaixo:

O governo Temer, a nova fase da contrarrevolução neoliberal e o desmonte da legislação social do trabalho

Por Ricardo Antunes

Sabemos que o neoliberalismo vem se efetivando por meio de um movimento pendular, quer por governos neoliberais “puros”, quer pela ação de governos mais próximos do social-liberalismo; em ambos os casos, os pressupostos fundamentais do neoliberalismo se mantêm essencialmente preservados.

Desde quando começou a ser efetivamente introduzida no Brasil, a partir da década de 1990, a pragmática neoliberal teve claras consequências: aumento da concentração de riqueza, avanço dos lucros e ganhos do capital, incrementados com a privatização de empresas públicas, além de deslanchar a desregulamentação dos direitos do trabalho. Foi assim com Collor e FHC.

Os governos do PT foram exemplos exitosos da segunda variante, ao introduzir uma política policlassista fortemente conciliadora, preservando e ampliando os grandes interesses das frações burguesas. Mas havia um ponto de diferenciação, dado pela inclusão de programas sociais, como o Bolsa Família, voltado para os setores mais empobrecidos, além da introdução de uma política de valorização do salário mínimo limitada, mas real, apesar dos níveis de salário mínimo no país serem absurdamente rebaixados. Basta compará-lo ao salário mínimo indicado pelo Dieese.

Enquanto o cenário econômico era favorável, o país parecia estar em um círculo virtuoso. Com o agravamento da crise econômica global (que teve como epicentro os países capitalistas do Norte e aqui se intensificou posteriormente), porém, esse mito começou a evaporar.

As rebeliões de junho de 2013 foram os sinais mais evidentes do enorme fracasso que se avizinhava, mas foram olimpicamente desconsideradas pelo governo Dilma. Esse quadro crítico se acentuou durante as eleições de outubro de 2014, quando começou a se verificar uma retração crescente do apoio das frações dominantes, uma vez que a intensificação da crise econômica indicava que esses setores que até então respaldavam (e ganhavam muito com) os governos do PT começaram a exigir um ajuste fiscal que acabou por ter uma dupla e trágica consequência. Por um lado, levou à crise terminal do governo Dilma e, por outro, ao desalento de inúmeros de seus eleitores nas classes populares, que a viram realizar o que dizia recusar na campanha eleitoral. De lá para cá, a história é de todos conhecida.

Consolidou-se a “alternativa ideal” das frações burguesas, agora em aberta dissensão: impossibilitada de ganhar pelas urnas, chegava a hora de deflagrar um golpe que teve no Parlamento seu lócus decisivo. Aqui vale um breve parêntese. Marx disse que o Parlamento francês, em meados do século XIX, vivenciou uma “degradação do poder” que lhe retirou “o derradeiro resquício de respeito aos olhos do público”.(1) O que dizer, então, do Parlamento brasileiro recente, no qual viceja um enorme núcleo que exercita solenemente sua forma pantanosa?

Assim, nossa transição pelo alto desencadeou uma nova variante de golpe (já experimentada em Honduras e no Paraguai, para ficarmos na América Latina), que precisava “arranjar” algum respaldo legal. E o fez recorrendo tanto à judicialização da política quanto à politização da justiça. Sempre com o apoio das grandes corporações midiáticas e com a ação, nas sombras, comandada pelo vice Temer e pela batuta indigente de Cunha na Câmara, ambos aliados do PT na época de lua de mel com o PMDB.

Tudo isso parece conferir plausibilidade a algumas formulações de Agamben,(2) uma vez que toda essa ação está perigosamente nos aproximando a uma forma (contraditória?) de “estado de direito de exceção”. E o golpe parlamentar que levou à deposição de Dilma, sem provas cabais – e ao mesmo tempo a isentou de perda dos direitos políticos (em mais uma flagrante incongruência jurídica) –, reiterou a farsa ao condenar uma presidenta por um crime que o mesmo Parlamento reconhece que ela não cometeu.

Tudo isso para que o governo golpista siga à risca a pauta que lhe foi imposta, uma vez que os capitais exigem, neste momento de profunda crise, que se realize a demolição completa dos direitos do trabalho no Brasil.(3) Dado que essa programática não consegue ter respaldo eleitoral, o golpe foi seu truque. Talvez por isso possamos denominá-lo, irônica e tragicamente, de um verdadeiro governo terceirizado.

Iniciou-se, então, uma nova fase da contrarrevolução preventiva, para recordar novamente Florestan Fernandes,(4) agora de tipo ultraneoliberal. Sua principal finalidade: privatizar tudo que ainda restar de empresa estatal, preservar os grandes interesses dominantes e destroçar os direitos do trabalho.

Em seu conhecido documento inspirador, Uma ponte para o futuro, cujo abismo social resultante não para de se intensificar, está estampado a trípode destrutiva a ser colocada em prática nos trópicos: privatizar o que ainda não o foi (em que o pré-sal se destaca como vital); impor o negociado sobre o legislado nas relações de trabalho, em um período em que a classe trabalhadora tem apontada uma espada no coração e um punhal nas costas, pelo flagelo do desemprego que não para de crescer; e, por fim, introduzir a flexibilização total das relações de trabalho, começando pela aprovação da terceirização total (conforme consta do PLC 30/2015).

E, para que a devastação seja completa, é preciso aviltar a Constituição de 1988, o que não é tarefa nada difícil para o Parlamento no qual o pântano é movediçamente oscilante. Basta um bom movimento negocial.

O objetivo perfilado pelo atual governo de Michel Miguel, no universo das relações de trabalho, é corroer a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) – que a classe trabalhadora compreende como sendo sua “verdadeira Constituição do trabalho” – e dar cumprimento à “exigência” do empresariado (CNI, Febraban e assemelhados), cujo objetivo não é outro senão instalar imediatamente o que denominei como “sociedade da terceirização total”.(5)

Não é outro o significado do PLC 30/2015. Depois de obter, anos atrás, a terceirização das atividades-meio, chegou a hora do outro golpe. Terceirizar tudo, com o encobrimento falacioso e perverso de que o dito PLC quer conferir direitos aos terceirizados. Mas ficam algumas perguntas centrais.

Primeira: se o empresariado, tempos atrás, justificava a terceirização das atividades-meio para se manter qualificado e focado nas atividades-fim, o que mudou agora? A resposta é direta: o embuste agora é outro e o mal dito vira desdito.

Segunda: se o empresariado quer garantir direitos aos terceirizados, por que exatamente nessas empresas de terceirização a burla e a fraude são mais a regra do que a exceção?
(…)
Sexta: a quem interessa fragmentar ainda mais a classe trabalhadora, ampliando as diferenciações intra-assalariados e dificultando ainda mais sua organização sindical?

A lista de perguntas seria quase interminável e o espaço já foi ultrapassado.

Aqui reside o segredo de Polichinelo: para garantir a alta remuneração dos capitais, vale devastar toda a população trabalhadora, começando pela destruição completa do que resta de seus direitos do trabalho, da previdência, da saúde e da educação públicas. Nem uma palavra sobre redução dos juros, tributação dos bancos, dos capitais e das grandes fortunas. Nada. Para isso deu-se a assunção do governo terceirizado. Só as lutas sociais poderão fazê-lo submergir. (Veja texto integral no Le Monde Diplomatique Brasil)

Ricardo Antunes é professor e sociólogo da Unicamp

Citações
1 Karl Marx, 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1974, p.39.
2 Giorgio Agamben, Estado de exceção, Boitempo, São Paulo, 2004.
3 Era chegada a hora de os capitais terem um governo-de-tipo-abertamente-gendarme, independentemente de quão úteis para as classes dominantes foram os governos do PT. Ver Ricardo Antunes, “Fenomenologia da crise brasileira”, Revista Lutas Sociais, v.19, n.35, dez. 2015. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/26672/pdf.
4 Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, Zahar, São Paulo, 1975.
5 Ver Ricardo Antunes, “A sociedade da terceirização total”, Revista da ABET, v.14, n.1, jan.-jun. 2015. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/abet/article/view/25698/13874.