Por João Neves

(2016 em Vista) – As reflexões desenvolvidas por Santuza Cambraia Naves¹ sobre a “canção crítica”, protagonizadas pelos cancionistas populares no Brasil, aponta para os diferentes contextos históricos evidenciados pelos entoamentos poéticos/melódicos desses artistas.

Em seu livro “Canção popular no Brasil”, a autora transita pelos principais gêneros musicais brasileiros presentes no século XX iluminando as sensibilidades que formaram nossa “era dos extremos”. Tomando como princípio que a canção crítica “tornou-se o veículo por excelência do debate intelectual, operando duplamente com o texto e com o contexto, com os planos interno e externo” e que “os compositores articulam arte e vida” (p.21), Naves trouxe à tona os movimentos políticos que provocaram novas subjetividades e, por conseguinte, novas experiências estéticas.

Partindo desses apontamentos vamos atentar nossos ouvidos para o ano de 2016. Perceberemos que os borborinhos, que antes se ouviam na coxia do palco, saem dos bastidores, atravessam a boca de cena e ganham, com toda a força, as ruas. Nesse ínterim, as grandes cidades brasileiras se contaminam por movimentos coletivos que impulsionam as demandas sociais.

Afinal, as tramas que foram tecidas em nosso passado recente ganham forma e deixa clarividente a permanência das contradições em nossa sociedade, ainda oligárquica, incrivelmente escravocrata, totalitária, genocida e sexista. Percebemos, nesse sentido, que a Casa Grande, arquitetada durante o período colonial, ecoa em nossa cultura e se mantêm nas engenharias de nosso sistema político. Mas, diante dos fatos, a Senzala, como sempre, não se calou.

Estava claro e anunciado, em todas as capas de jornal, que o Partido dos Trabalhadores (PT), reeleito em 2014, não serviria mais aos interesses do CAPITAL. Ficou explícito, desde de então, que as bases da “democracia representativa” não passavam de um engodo mal arranjado, pois, como percebemos no decorrer dos acontecimentos, a primeira “lavação” colocou tudo no chão.

Os interesses de megacorporações, banqueiros, especuladores, latifundiários, milicos e fundamentalistas valeram mais do que 54 milhões de votos. O golpe as instituições democráticas levaram ao ápice o processo de desmonte das conquistas sociais materializadas, em alguma medida, nas políticas públicas promovidas nos últimos doze anos de petismo. Contudo, as raposas que atacaram o galinheiro foram surpreendidas pelas frentes que se entrincheiravam “pela democracia”.

“O sistema é bruto, o processo é lento
nosso sentimento, não vai recuar
amor, liberdade, verdade, alimento
não tinha e agora querem golpear

as velhas raposas querem o galinheiro
roubaram dinheiro mas fingem que não
querem que o petróleo seja do estrangeiro
pra esconder ligeiro sua corrupção.”

Os dias de tensão provocam transformações e isso se materializa na canção “Pela Democracia”. A batida do funk, tão criticada e estigmatizada, passa a compor uma “canção crítica”. Os beats desenvolvido nas favelas tomam conta das ruas e canalizam as vozes contra o golpe instituído.

Enquanto vozes sampleadas cantam: “Não, não, golpe não! Quem não teve voto tem que respeitar”, a câmera/drone perpassa as principais manifestações populares ocorridas no ano de 2016 em diferentes partes do país. Após esse panorama, o grave pulsa com força. Bailarinos – da LIGA do FUNK! – nos convidam para dançarmos/ocuparmos a rua e outras vozes passam a compor o coro. Instrumentistas, atores, cantores, representantes de movimentos sociais, dentre outros militantes somam ao grito: “Não, golpe não!”.

Seguindo os pulsos da canção percebemos que as colocações de Naves estão presentes nessa produção, haja vista que “ao estender a atitude crítica para além dos aspectos formais da canção”, os compositores populares envolvidos na luta pela democracia tornaram-se pensadores e propositores da cultura. As provocações do momento histórico faz com que artistas/intelectuais se envolvam, mais uma vez, no processo de “educação sentimental” dos jovens de sua geração.

Os 54 milhões não se calaram. Ocuparam. Reagiram. Exemplo disso, foram meninas e meninos de diferentes regiões do país que, com ousadia e irreverência, reacenderam as esperanças para mostrar, as duras penas, que 2016 deverá ser lembrado como o ano em que as lutas se acirraram e novas estratégias se desenvolveram.

Estudantes do Ensino Médio dos Estados de Goiais, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná (Lucas Eduardo Araújo Mota, presente!), Minas Gerais (Uberlândia!), Mato Grosso, Alagoas e outros mais, protagonizaram a resistência, promoveram aulas públicas e colocaram os malditos contra a parede, pois “ninguém tira o trono do estudar”.

Se na primeira metade do ano, mesmo com a deflagração do impeachment da presidenta Dilma, vibramos com funk-soul-rap “Pela Democracia”, no segundo semestre de 2016 as vozes das ocupações nas escolas públicas que compuseram o ambiente sonoro.

Nessa empreitada, o experiente Chico Buarque assume o vocal de abertura da canção “Trono do Estudar”. No estúdio de gravação, em tons acinzelados que expressavam os sentimentos daqueles dias, cantores de diferentes gerações se entrincheiravam para defender direitos fundamentais.

Se daqui alguns anos quiserem ouvir 2016 perceberão que a canção crítica cantou pela democracia e ocupou por direitos.

Sobre a aprovação da PEC, deixo que Siba, ao som do frevo, tome a palavra e mostre as sutilezas e minúcias dessa “Marcha macia”, afinal “O boato era verdade/A nova ordem tomou conta da cidade/É bom pensar em dar no pé quem não se agrade”, pois

Progrediremos todos juntos muito em paz
Sempre esperando a vez na fila dos normais
Passar no caixa, voltar sempre comprar mais
Que bom ser parte da maquinaria.
Teremos muros, grades, vidros e portões
Mais exigência nas especificações
Mais vigilância, muito menos exceções
Que lindo acordo de cidadania!

¹ NAVES, Santuza Cambraia. Canção Popular no Brasil: a canção crítica. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.
João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.