Por João Augusto Neves

clementine-divulgaNo apogeu da vida moderna, em meados do século XIX, Edgar Allan Poe se embebecia com as multidões que percorriam os boulevards londrinos. Enquanto tomava seu café, via os distintos corpos que cruzavam as largas avenidas daquela populosa cidade.

Londres se envaidecia frente o desenvolvimento tecnológico produzido pela revolução industrial em seus arredores e se orgulhava dos ornamentos que compunham o crescimento urbanístico da região, que, naquela época, representava a mais rica do mundo industrial. Entre as multidões e os conglomerados urbanos que se formavam, Allan Poe identificou, no entanto, o espectro da solidão que contaminava a performance citadina.

“Sentado ante a grande janela do Café D… Londres”, Allan Poe observou que “muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba”1. Múltiplos rostos, vestes e formas se imprimia entre os transeuntes e “conforme a noite avançava, progredia o interesse pela cena”. Enquanto o crepúsculo se aproximava, o escritor acreditava que desse tumulto citadino ele poderia apreender, entre as faces individuais, “a história de longos anos”. E dessas conjecturas

com a testa encostado ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe.”

Eis que surge “o homem da multidão”. Essas palavras levaram o francês Charles Baudelaire, o principal tradutor de Allan Poe na França, crer que “não é dado a todo mundo tomar um banho de multidão: gozar da presença das massas populares é uma arte”2. Nesse dialogo fica latente que a multidão e a solidão se completam nos olhos do “poeta ativo e fecundo”, pois “o passeador solitário e pensativo goza de uma singular embriaguez desta comunhão universal.”

Baudelaire e Allan Poe nos presenteou, entre outras(os) autoras(es), com sensíveis interpretações sobre os sentimentos comuns à vida moderna. Seguindo esses rastros, Walter Benjamin, demonstra, o quanto somos modernos e, além disso, o modo como os sentimentos anunciados por Allan Poe e Baudelaire preenchiam o cotidiano dos homens e mulheres modernos. Há, contudo, aqueles que acreditam que essas pulsões se restringem a contextos passados, já que vivenciamos, segundo essas interpretações, a pós-modernidade. Mas, nas ruas movimentadas de Londres e depois no metro de Paris, em pleno começo do século XXI, outro homem se destaca entre a multidão.

Criado em Edmonton, bairro localizado no norte de Londres, cujo o índice de desemprego atinge as maiores taxas naquela cidade, quinto filho de imigrantes Ganeses, o poeta e músico, Benjamin Clementine retoma as provocações dos poetas modernos e nos recoloca, entre as melodias de seu piano, questões da modernidade. Ele, como o homem da multidão de Allan Poe, circulou pelos limites da cidade de Londres e viu “a marca da mais deplorável das pobrezas”3 e quando resolveu viver em Paris, aos 18 anos de idade, se misturou entre tantos outros imigrantes jovens que trocavam a cada dia de morada – as vezes em hotéis, quase sempre nas ruas. Nos momentos que andou por esses rincões percebia o quanto “a desolação pervagava a atmosfera” e ouvia “sons de vida humana”. A canção “Then I heard a Bachelor’s”4 nos convida a perceber os sentimentos pulsantes nas urbes do século XXI.

Da mesma forma que Allan Poe e Charles Baudelaire, Benjamin Clementine andava pelas ruas – de Londres e Paris – a procura de respostas (“Lately I’ve benn searching, searching for answers”). Ele conta que – descalço, com os pés gelados, com seu sobretudo negro e com a voz firme – caminhava pelas avenidas a procurando mágicos (“I walk around the boulevards, looking for magicians”). Nesse andar solitário e melancólico, ele diz não poder ajudar, mas grita do fundo de seus pulmões (“I can’t help but shout at the top of my lungs”). Com sua voz serena, acompanhada pelas notas do piano entoadas em pianíssimo, se questiona, em meio a multidão, quem será o próximo a se machucar (“Who is next in line to get hurt”).

Benjamin Clementine, pontua que o passado não mais garantirá nossa segurança no futuro e que, mesmo sabendo que Deus nos criou belo, não há certeza de que esta beleza é capaz matar. Então “Who is next in lie to get speared?” (Quem será o próximo na fila a se espetar?)

A pergunta nos leva ao fortíssimo e Clementine declara:

I sorry,

I can see our future

It isn’t so bright

There isn’t any light.5

Após o trágico anúncio, ele, em prantos, novamente pergunta quem será o próximo a se ferir. A canção vai se dissipando e as palavras finais tingem-se com a embriagues do “pensador solitário e pensativo”6 que agora “I wait, I wait for my next prey, I wait here.”7 Benjamin Clementine, como homem da multidão, nos oferece vestígios para compreender as coisas “que não se deixa ler”8. Ele anuncia os gemidos daqueles vivem o crepúsculo que findará a linguagem – Adieu au Langage.

3 POE, Edgar Allan. O homem da multidão, 1840.

5 Desculpe, eu posso ver nosso futuro/ Ele não é tão brilhante/ Não há nenhuma luz.

6 Baudelaire, Charles. As multidões. (?).

7 Eu espero/ eu espero/ para o minha próxima presa/ eu espero aqui.

8 POE, Edgar Allan. O homem da multidão, 1840.

João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.