Por José Roberto Cabrera

27566589355_81b851d00d_zA vida dos professores é repleta de contradições e muitas delas são insolúveis. Quase toda a população reconhece a importância de sua função, mas poucos se solidarizam com as lutas pela melhoria do ensino; a maioria entende que seus salários são incompatíveis com a função social do educador, mas é uma minoria que apoia seus movimentos grevistas; são respeitados pelas dificuldades enfrentadas no exercício diário do magistério, mas quase ninguém se lembra disso na hora de votar e eternizam políticas que não valorizam nem a educação e nem os educadores.

Mas, além dessas, existem outras contradições que os acompanham. Os professores se digladiam com um problema insolúvel: a cada ano que passa eles ficam mais velhos e os alunos continuam com a mesma idade. Essa é uma estranha sensação da passagem do tempo.

No dia a dia esse desafio se repõe pois, às vezes, um comentário que teve uma boa repercussão ou foi engraçado com uma turma de alunos, não provoca reação alguma num outro semestre. Uma explicação que foi totalmente convincente num ano parece adquirir outra face e se torna enfadonha no ano seguinte. E as palavras, ah! as palavras, essas são cruéis, mudam de significado e quantas vezes não conseguimos estabelecer uma comunicação que seja minimamente eficiente.

Eventualmente um recurso alternativo, um vídeo, uma música que tenha um significado marcante, crítico, e que emocionou e motivou toda uma classe no semestre passado, agora não produz efeito algum. Excelentes filmes que usei em sala de aula parecem perder seu impacto no tempo presente. É quase como se o roteiro, o ritmo, a estética, os recursos etc. se esvaíssem e fossem incapazes de sensibilizar outros olhares.

Mas isso faz parte da nossa realidade: em períodos curtos as coisas mudam e os professores buscam incessantemente se adaptar às circunstâncias para cumprir seu papel social e estimular a crítica e a reflexão sobre conhecimento, sociedade e a vida de uma maneira geral, mesmo sabendo que no ano seguinte ele estará um ano mais velho e seus alunos com a mesma idade.

O momento de crise política que atravessamos exacerbou alguns comportamentos que estavam no ‘armário’ e, ao abrir as portas, permitiu um conhecimento sobre coisas que exigiam de nós, professores e pais, algum tempo para explicar, formular hipóteses, comparar com a realidade concreta e oferecer a experiência da crítica. No entanto, a realidade prega umas peças na gente e quando menos se espera aparece alguma coisa que dispõe de uma capacidade explicativa inigualável.

Muitas vezes, para explicar as características marcantes da sociedade brasileira, suas contradições, a construção da desigualdade econômica, social e política, a violência, a corrupção endêmica, as relações promíscuas entre o Estado e as classes dominantes, o autoritarismo intrínseco ao nosso sistema e às nossas instituições etc. era necessário buscar nas experiências do passado as raízes desse processo.

Explicar a origem dessas coisas sempre exigia algum nível de abstração e muitos exemplos para compreender a herança dos processos históricos no desenrolar da vida cotidiana. No entanto, o Bolsonaro resolveu isso para nós.

Quando pensamos no período da ditadura, sua herança autoritária e o modo como ela comprometeu o desenvolvimento da tolerância com as diferentes opiniões é só mostrá-lo e, pronto, o exemplo já diz tudo.

Do mesmo modo quando se trata do machismo e da violência contra a mulher, tão enraizada em nossa sociedade, não precisamos de muitos exemplos, pois lá vem ele de novo e pimba, resolvemos mais um.

Se o assunto for homofobia, advinha quem vem à mente? Aqui há um arsenal de frases repletas de preconceitos e desrespeitos de alguém que demonstra total desconhecimento do tema e da legislação, mas, enfim, é ele.

Preconceito racial, imagine quem pode ser? Claro, o próprio, que é incapaz de entender que saímos do século XIX e que a diversidade é nossa principal riqueza.

E sobre os direitos humanos? De novo ele, que incansável defensor da violência estatal, ataca toda e qualquer manifestação em defesa dos direitos humanos. Se bobear, para ele a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada na ONU em 1948, foi obra daquela maldita comunista ex-primeira dama, Eleonor Roosevelt, vinda daquele Estado esquerdista da América do Norte.

Se o tema for desrespeito à democracia, à liberdade de expressão aí ficou muito fácil. Ele, que não respeita nem as instituições da democracia nem a opinião alheia, defende uma versão da história onde a morte dos adversários políticos era o desejo e o dever.

Se o tema for a manipulação dos símbolos da pátria, de novo ele aparece entre nós. É quase onipresente. Se apega a bandeira nacional, ao exército e outros símbolos para se aliar àqueles que pretendem vender a preço de banana as riquezas nacionais ao capital estrangeiro. Chega ao ponto de chamar de herói um torturador covarde – desculpe o pleonasmo – que, sob o aval do uniforme verde-oliva, comandou a tortura e o assassinato de dezenas de brasileiros.

E o fascismo, então? Sobre esse tema nosso personagem é uma enciclopédia. Não reconhecer que o outro tem direitos e opiniões diferentes das suas é um princípio do fascismo que ele exercita com maestria. Não é apenas o não reconhecimento do direito à divergência, é a incapacidade de aceitar o outro como igual. Desse modo, fica impossível estabelecer qualquer tipo de debate, uma vez que não há interlocutor legítimo. Aqueles que divergem são quase como uma sub-espécie de homens, incapazes de entender e aceitar os valores que as elites – econômicas, intelectuais ou raciais – defendem e que, portanto, devem ser reprimidos e colocados em seus devidos lugares. O apelo à ideia de ordem, imposta pela força aos estratos mais pobres e iletrados da sociedade, é a materialização desse princípio, o qual não admite diálogo, pois, para o fascista, não pode haver diálogo entre desiguais.

No interior desses exemplos, emerge uma triste constatação: os efeitos de uma educação moldada no autoritarismo que não reconhece a diferença, nem os questionamentos como princípios do conhecimento. A ditadura introduziu reformas no sistema educacional, em consonância aos interesses do capital, fortalecendo a ideia de uma educação voltada para o atendimento do mercado de trabalho. Ou seja, uma escola orientada para a formação de mão de obra qualificada e de baixo custo.

Num ambiente onde se estudava Educação Moral e Cívica, se decorava nomes de ministros da Ditadura Militar em aulas de história, onde se comentava em sala de aula o Programa do Amaral Neto e professores contavam piadas racistas esperar espírito crítico era quase utopia. Isso pode não explicar tudo, mas ajuda a entender um pouco o porquê do Bolsonaro.

Ele não é a origem de todo o mal, nem capacidade para isso ele tem, mas resultado de um processo maior e mais profundo. Num país onde uma pessoa que ocupa o Ministério da Educação recebe um estuprador confesso para ouvir suas sugestões para a educação, outras coisas estão fora do lugar.