Por João Augusto Neves Pires

Entre os golpes da vida, ouçamos e aprendamos com a sonoridade da cultura popular

Alessandra-Leao pernambuco govEnquanto alguns comemoram a concretude de seus planos e a (in)eficácia da democracia representativa, outros cantam a dor e a alegria da resistência. Na última sexta-feira (2/9), no Centro Cultural Casarão, em Barão Geraldo, Campinas, vimos e ouvimos ressoar os sons desses sentimentos. Alessandra Leão e Caçapa, harmonizaram tensões e potencializaram angustias misturando-as com as doçuras dos cantos, contos e danças populares de nosso Brasil profundo. Através desse mergulho fomos aos afetos que germinam das raízes do Brasil, não da maneira Buarquiniana, mas da forma com que os mestres cancioneiros, lavadeiras, bordadeiras, mães e pais de santos chegam as profundidades das relações e criações humanas.

No salão de espetáculos do Casarão, Alessandra e Caçapa se posicionaram no canto esquerdo, onde a iluminação, em comunhão com o rincão da sala, lhes concediam total atenção. Compunha o palco, além de duas cadeiras rústicas – provavelmente emprestadas pela mobília do antigo Casarão –, os instrumentos que fizeram o ambiente sonoro do espetáculo. A presença do tambor, de chocalhos, do caxixi, do pandeiro, da guitarra de 12 cordas e da viola, madeiras e metais de vida-morte, nos colocava diante dos traços de nossa cultura e nos instigava a pensar no híbrido sonoro das culturas populares brasileiras/afro-indígenas. Desse ambiente, os cancioneiros nos convidavam a viajar pelo sertão, pela Zona da Mata e pelo litoral Nordestino. Quando nos dávamos conta chegávamos as cidades, as vilas pesqueiras e aos povoados que pulsam resistências milenares.

Nesse ínterim, as batidas do coco, as rodas de ciranda, os rituais de candomblé e as forças do maracatu tomavam conta do salão. A performance ritual se concretizava diante de nossos olhos e a cada música, no “estreito espaço entre carne e vísceras”, abríamos “os olhos e vimos do que somos feitos” (Alessandra Leão). Submersos em uma longa empreitada investigativa sobre práticas populares e os sujeitos que formulam essas subjetividades, Caçapa e Alessandra pinçam sons, linguagens e gestos desse universo para acalentar corações. E avisam

Não vá se perder com tanta estrada
Não se pode esquecer do objetivo
Não há laço maior que o afetivo
Nem amparo melhor que a madrugada
(Boa Hora – Alessandra Leão)

Sabendo que nossas memórias movem-se no compasso de nossos sentimentos, Caçapa e Alessandra, entre tragadas e suspiros, nos desafiava a buscar “o aço” que existe/resiste.

EP Aço – Alessandra Leão.

É interessante notar que ambos são parte de um movimento musical, melhor dizendo, participam de encontros afetivos-musicais, que vem tomando nossos ouvidos nesse segundo decênio do século XX. Falo de Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Siba, Mariana Aydar, Rafa Barreto, Mestre Nico, Tulipa Ruiz e muitos outros artistas escondidos nos interiores dos diferentes brasis. Daqueles que me lembrei o nome – memória fresca devida a atenção e conhecimento de seus respectivos trabalhos – somos presenteados por um rico trabalho de experimentação sonora e por provocações estéticas, que, por isso, torna-os protagonistas da produção de outras subjetividades políticas e afetivas.

Nessa música(ação) que Caçapa e Alessandra Leão se inserem. Pesquisas, experimentações, encontros, afetos e sons. E, a partir disso, eles nos lembram que se os tambores ainda soam deve-se as mulheres e homens que não se curvaram frente as adversidades da vida. Na seca, na peste, na fome e nas violências do cotidiano rural e urbano o povo grita, produz sons, timbres e melodias que narram as belezas e feiuras da sobrevivência.

João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.