Por João Augusto Neves Pires

imagem-divulga-bahiaA música popular brasileira tem como traço particular a capacidade de transpirar as pautas políticas que ocupam as ruas do país. Ela é capaz de catalisar as emoções e se tornar canal de mediação entre as vozes que ressoam nos diferentes rincões do território brasileiro.

Não por acaso existe uma vasta produção historiográfica que se debruça, através das canções da música popular, sobre o período da ditadura militar. Afinal, as melodias, timbres e poesias das composições produzidas durante os 21 anos de ditadura civil-militar em nosso país estão carregadas de sentimentos próprios do contexto de terror instaurado na sociedade brasileira naqueles anos.

Ano de 2016 e novamente nos deparamos com uma conjuntura similar à dos anos de 1964. Vemos, outra vez, uma ala conservadora e reacionária de nosso país tomar de assalto as instituições que cumprem a função de garantir e preservar os direitos previstos em nossa constituição. Dia após dia movimentos sociais e agentes políticos que assumem posições à esquerda, ou que pelo menos, flertam com um debate mais propositivo para o país, são perseguidos e criminalizados.

Contudo, a luta continua e, outra vez, a música popular brasileira ressoa as vozes dos movimentos de contestação. As novas produções musicais ouvidas Brasil à fora estão impregnadas pelo debate político e das forças progressistas que resistem ao novo golpe. Se formos à Bahia e cruzarmos pela cozinha mineira, por exemplo, muita resistência será ouvida.

No dia 23 de Setembro, foi possível ver, do alto do Observatório da Unicamp, a maneira pela qual nosso país, em meio aos conflitos políticos, produz novas subjetividades. Duas mulheres trans e uma banda formada por jovens músicos oriundos de regiões esquecidas no vasto território brasileiro, organizaram, durante sua performance, o acumulo político que marcam a segunda década do século XXI. A banda traz ao palco as Marias, Josefas e Berenices. Mães/mulheres que resistem e constroem, na luta cotidiana, uma outra perspectiva de país. Mulheres que foram silenciadas por anos e hoje, como antes, devem ser escutadas, pois em suas mãos e,

Na sacola da feira, tem de besteira a feijão
Tem também muitas eras de carga alçada em tua mão
Pudera ter tempo, senhora, tanto tempo pudera e tem.

A afirmativa de que ainda há tempo torna-se verdadeira a partir do momento que percebemos, como indica As bahias e a cozinha mineira, de que “os pés de jaca plantados” pelas Josefas cresceram. Apesar “das dores do mundo em seus joelhos”, resultado de rezas e resistências, elas criaram “seus filhos nos trilhos da seca paulistana” e hoje essas meninas e meninos são símbolo de luta.

Fazem parte também dessa frente popular as famílias de candangos que “comiam comida forte para construir a capital, Brasília”. Passados 50 anos da materialização desse pesadelo de progresso, serão esses candangos que reconstruirão a história de nosso país*. Agora, “como um ponto após outro ponto”, tecemos “outro ponto que se vai a andar”. Durante essa urdidura, as Marias que puxaram a corda da história nos veem “descarrilhar o carretel” para produzirmos outras subjetividades. E se “o tempo, a foice de aço”, amolou, “prensando nosso melaço sangradouro”, hoje nossas minas urgem mudança.

Os ventos da Bahia e da cozinha mineira passaram por Campinas e mostraram que as reticências são partes integrante da operação de (re)escrita da história**, e, por isso, temos que tomar, mais uma vez, as linhas desse carretel que conduzem as pipas no céu, seja para conduzi-lo ou descarrilhar-lo.

*O cineasta Adirley Queiroz e seu coletivo que produziram “A cidade é uma só” e “Branco saí, preto fica!” são exemplos concretos dessa investida.

**Lembrem-se Assucena Assucena e Raquel Virgínia se conheceram nos corredores do curso de História na FFLCH/USP

SUGESTÕES:
Mulher – As Bahias e a Cozinha Mineira

MM3 – Metá Metá

João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.