Por Alessandra Caneppele

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Nosso mundo é governado pelo princípio do obsoleto: vivemos para adquirir coisas cujo valor será temporário, com um prazo de validade curto, antes de serem descartadas e trocadas por outras. Desse modo, nos tornamos os grandes consumidores e produtores de lixo que somos hoje. Além de esgotar os recursos naturais do planeta, enriquecendo alguns poucos, esse modelo econômico esgota também os sujeitos que o praticam – homens, mulheres, jovens e crianças presos a uma roda viva de insatisfações, eternos saciados e esfomeados ao mesmo tempo.

Ao lado desse mundo de incessante consumo, sobrevivem aqueles que não têm o que colocar no vazio real e doído do estômago. Quando Lula e o PT chegaram ao poder, era a hora de fazer com que esses estômagos vazios parassem de roncar. Mas qual modelo de satisfação desse buraco real e muito antigo os governos petistas escolheram?

Lembro-me das manchetes que corriam os jornais nos anos de governo Lula sobre a nova classe média brasileira, representada pelos milhões de brasileiros que então passaram a consumir Danoninho e outros iogurtes. Todos estavam felizes: os que agora consumiam e os que então aumentavam as suas vendas de produtos que já não mais encontravam seu mercado lá fora. Optamos, assim, por preencher a barriga vazia do povo com esses produtos – e as pesquisas mostram que hoje, paradoxalmente, o brasileiro é, ao mesmo tempo, um povo mais obeso e subnutrido! Enfim, engordamos de mercadorias, mas não aprendemos a comer melhor…

Esse dado é paradigmático para pensarmos os moldes do desenvolvimento proposto pelos governos petistas: desenvolver o país era aumentar o número de consumidores de produtos industrializados. E foi assim também com a chamada linha branca (geladeiras, fogões), televisores, móveis, etc. E não paramos para pensar se colocar milhões de brasileiros já grandes ou ainda pequenos na roda viva do consumo industrial seria o que efetivamente faria do brasileiro uma pessoa mais rica – qualquer um que ponderasse contra esse modelo consumista de desenvolvimento era chamado de elitista, pois estaria negando aos outros aquilo mesmo de que usufruía…

O quanto mesmo a educação, através do Fies e o PROUNI, não foi abordada como um produto de consumo, propondo uma educação mercantilista que concebia o título como mera mercadoria, contabilizada nas estatísticas, sem que o aluno pudesse passar de fato por uma formação? E o programa Minha casa, minha vida, financiando casas que, se certamente são um primeiro teto para milhões, carregam consigo já o efêmero e capenga de suas soluções de engenharia e de urbanística, não seria mais um curativo do que uma cura para a perpétua exclusão de milhões de brasileiros? Enfim, os governos petistas inegavelmente se ocuparam como nunca havia sido feito antes em alimentar, educar e abrigar os brasileiros excluídos – mas, tal qual o Danoninho, a alimentação não escondeu, sob a gordura, uma nova desnutrição? Não criamos apenas mais corpos cuja desnutrição atávica é necessária para a perpetuação do enriquecimento de alguns poucos?

Enquanto isso, ficamos anos e anos esperando dos governos petistas as reformas que poderiam mudar estruturalmente a nação brasileira e seus homens, mulheres e crianças: uma reforma dos meios de comunicação que, através da informação consciente, nos ajudaria a consumir e a fazer escolhas melhores no nosso dia-a-dia; uma reforma agrária, que criasse um país de pequenos proprietários de seus meios de produção, produtores ecológicos e ligados aos fundamentos da nossa terra, e não um país que é o maior consumidor de agrotóxicos já banidos do resto do mundo; uma reforma urbana, que transformasse as cidades em espaços coletivos de cultura e saber e não em calçadas ocupadas pelo crack e pelos seus traficantes; uma demarcação das terras indígenas, que finalmente nos ensinaria a conviver com nossos outros povos; uma reforma do sistema tributário, que fizesse com que os bancos, os grandes devedores e os ricos começassem enfim a pagar imposto.

E NESSE PONTO CHEGAMOS A NOSSA CRISE POLÍTICA ATUAL: por anos, esperamos a reforma política, que nunca veio, e continuamos, nas campanhas financiadas, comprando o político produzido/financiado por um grupo de empresários. Agora, estamos mais ou menos nas ruas, mas estamos todos insatisfeitos com nossos produtos: aqueles que se manifestam contra o impeachment, assim como aqueles que foram às ruas pedir Fora Dilma – e que, de repente, “descobriram” que tirá-la e colocar o outro no lugar não vai melhorar nada! Hoje, somos todos reféns de um sistema político que é apenas um instrumento de execução do mal contra a coletividade…E então, entram com desenvoltura em cena as demandas de reforma outras, que só interessam a um pequeno grupo de poderosos que querem perpetuar a fábrica de fortunas que é o Brasil para eles: a reforma da previdência, supostamente falida; a reforma dos direitos trabalhistas, supostamente culpados pelo desemprego! Sem as reformas que queríamos, amargamos o terror das reformas que tememos!

A manobra política congressista que resultou no golpe contra Dilma foi patrocinada por uma parcela da população brasileira, embalada pelas propagandas, que acha que a política obedece às mesmas leis de consumo do seu dia-a-dia: não quero mais, vou comprar um outro melhor, que eu vi na propaganda. Parcela da população mal-acostumada, que no dia seguinte acorda percebendo que vai ter que comprar um outro, e depois um outro, pois nenhum deles é “satisfação garantida” – uma elite que, como um filho mimado, trata a política como quem trata o seu guarda-roupa e que acha que as leis servem apenas para serem modificadas para a realização dos seus desejos. Foi como consumidores vorazes e insatisfeitos que esses se comportaram politicamente.

Mas o quanto um mesmo funcionamento empanturrado de fermento lácteo não continua, ironicamente, sendo a forma que encontramos para nos manifestarmos contra uma política ilegítima? Agora, não vamos às ruas apenas em busca de um novo produto? Qual? Como ele poderá, nesse cenário político, satisfazer a nossos anseios de transformação? Ausentes as reformas estruturais da política, queremos trocar novamente de presidente, assim como trocamos de marca de iogurte, sem perceber que o erro está em acreditar que o novo Danoninho poderá valer por um bifinho!

O PT, ao aburguesar seu projeto de país e não lutar pelas reformas estruturais, cultivou não apenas entre seus comparsas políticos em Brasília a praga que o devorou, mas também alimentou uma sociedade que só pode se manifestar politicamente hoje como consumidor às voltas com seu desejo de um novo produto. E agora, resta-nos querer somar ao produto ilegítimo Temer um outro produto, contrabandeado, na esperança de assim adquirir o que achamos que temos direito a ter. Sob um novo disfarce efêmero, não é o mesmo vazio político que assim mantemos intocado?

Mas, em meio a essas manifestações do “tira um, põe outro” do consumista burguês, nos perguntamos onde estará aquele novo consumidor fugaz de iogurte da era Lula?

Os excluídos, acostumados por séculos a não ter iogurte todos os dias, se calam resignados e com fome, pois aprenderam na carne, com sofrimento, que a vida não se resolve com o acesso imediato a um novo produto do mercado. Sabedoria que nossa elite parece desconhecer e insiste em não aprender. Resta-nos apenas, como burgueses mimados, espernear gritando que podemos desobedecer às regras do jogo novamente para ter nas mãos o novo produto que “precisamos” ter? Ou aprenderemos duramente a ficar sem o que queremos e a lutar, trabalhar, fazendo uma oposição ferrenha a esse governo e a seus atos, que não queremos?

Nada vai mudar enquanto continuarmos a acreditar que o novo Danoninho vai valer por um bifinho. Talvez, infelizmente, o governo ilegítimo Temer seja hoje o bife duro e indigesto que teremos que mastigar para finalmente abandonarmos o projeto de uma nação infantil e teleguiada pelo consumo do facilmente digerido que nos mantem ainda esfomeados no eterno berço esplendido do subdesenvolvimento.