Por Guilherme Boneto

O Congresso Nacional, protagonista do impeachment de Dilma, nos distancia de um sonhado projeto de Brasil

Começa hoje em Brasília a ópera bufa da maior fraude política e eleitoral já registrada desde a redemocratização do país.

Uma presidenta eleita de forma direta por mais de 54 milhões de brasileiros será provavelmente deposta pelo Senado federal, após um teatro montado para tentar convencer o Brasil de que Dilma Rousseff cometeu crime de responsabilidade no exercício da Presidência da República. Desde o início, entretanto, todas as cartas já estavam marcadas.

Quem pede a deposição da presidenta move-se pelo desejo de vingança após a quarta derrota presidencial consecutiva, todas elas para as forças progressistas; quem se movimenta contra o golpe, por outro lado, sabe exatamente o que ele significa e o que leva os adversários a atuar – literalmente – como se estivessem de fato preocupados com o Direito e com o que prevê a Constituição. A punição a Dilma seria algo como condenar a 30 anos de prisão uma mãe que rouba um pacote de bolachas do supermercado, uma punição absurda e desproporcional e lamentavelmente característica no Brasil.

Conforme os apoiadores da presidenta assinalam com minúcia nas redes sociais, após a finalização do processo, ao qual resistiu de maneira admiravelmente firme, Dilma Rousseff retornará à sua casa em Porto Alegre para aproveitar a infância dos netos Gabriel e Guilherme, ambos ainda crianças. O tempo dirá se a legítima presidenta do Brasil terá disposição para viajar o mundo e denunciar o que fizeram com o nosso país, o que eu acredito ser possível ao observar a disposição de Dilma em permanecer firme diante de todo o processo fraudulento do impeachment.

O golpe, entretanto, vai muito além da figura de Dilma Rousseff, independentemente de suas atitudes e compromissos para o futuro próximo. Ela foi apenas o bode expiatório da vez, mas não se iluda: o golpe é contra você e contra mim. É contra o futuro dos seus filhos e contra a ideia de um Brasil que, lamentavelmente, ficou no projeto.

Desde o alvorecer do governo Lula o Brasil se pronuncia ao mundo como uma nação dona do próprio nariz. O ex-presidente deu início a um projeto que fazia justiça ao gigantismo do Brasil, em todos os sentidos. Expandimo-nos em relação à África, iniciamos uma missão de paz no Haiti. Passamos a ouvir e respeitar a todos os nossos vizinhos latino-americanos, e confrontamos com altivez os interesses do chamado “mundo desenvolvido” quando estes iam contra os nossos. Também adotamos e lideramos políticas de integração com as demais nações do esquecido hemisfério sul. Cercado de uma equipe competente, Lula mostrou ao mundo um grande Brasil, um Brasil que desafia, que choca, que se apresenta como de fato é.

E o que vemos agora? O governo interino está iniciando a venda dos campos de petróleo encontrados sob a camada pré-sal, que poderiam garantir ao Brasil um futuro grandioso. Documento que embasará a gestão do presidente Michel Temer prevê privatizar o maior número possível de empresas públicas. Sob a batuta de José Serra, o Itamaraty distribui desaforos pelo mundo, destruindo a reputação de conciliador que o Brasil mantém há décadas em sua diplomacia. Ministros do governo interino dão à imprensa declarações bombásticas, pelas quais são obrigados a se desculpar em seguida. A equipe ministerial de Dilma Rousseff, composta também por mulheres e negros, foi substituída apenas por homens brancos, anulando a representatividade da população brasileira no Poder Executivo – um desastre sem precedentes.

O governo interino também promete para o pós-impeachment uma série de desmontes sociais que mostrarão aos trabalhadores de direita – uma espécie ainda a ser estudada pela ciência – quem é que vai pagar o preço do golpe. Prevê-se o corte de verbas públicas nas mais diversas áreas, a começar por saúde e educação. Os direitos dos trabalhadores também serão diretamente afetados. Temer pretende modificar a CLT e mexer inclusive no direito às férias e ao 13º salário. A mera ideia de um governo disposto a modificar direitos históricos dos trabalhadores é um absurdo, uma excrescência. Jamais passariam pelo crivo das urnas.

O futuro político do Brasil também está em jogo. O modelo de país que desejamos está muito distante daquele pelo qual lutamos no nosso dia a dia. Os brasileiros não poderiam ter permitido a deposição da presidenta Dilma Rousseff. Em qualquer outra nação minimamente politizada, estaríamos todos nós nas ruas, mas não é o que ocorre aqui. Depois desse espetáculo deprimente, nenhum presidente com minoria no Congresso terá segurança para governar, e o poder legislativo continuará a ser composto por uma mistura explosiva de analfabetos funcionais e corruptos, dispostos a incendiar o país como agora estão fazendo. É claro que nem todos os deputados e senadores são assim.

É importante frisar que há ali muitos parlamentares responsáveis e comprometidos com o país, à esquerda e à direita. Há muitos outros, entretanto, que descaracterizam as casas nas quais representam o povo. O Poder Legislativo, que supostamente deveria atuar em harmonia com os poderes Executivo e Judiciário, se utilizará de suas atribuições para transformar o Presidente da República em refém de interesses muito pessoais. No futuro próximo, um presidente disposto a encampar reformas que tragam melhorias efetivas à vida da população – o que não era o caso de Dilma, vale registrar – será acuado pela possibilidade de arriscar seu próprio mandato. E nós seguiremos a ser uma das nações mais desiguais e injustas deste mundo.

O ex-ministro Ciro Gomes fez uma observação precisa em uma das muitas entrevistas que vem concedendo ultimamente. De todos os presidentes eleitos nos regimes democráticos, apenas Juscelino Kubitscheck, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva conseguiram concluir seus mandatos constitucionais. Como disse Ciro, a regra é o golpe, e eu lamento constatar: continuará sendo assim. Espero ver num futuro próximo um cenário de país que me faça acreditar de novo. Enquanto isso, sigamos caminhando e lutando.