Por Gabi Prado

biaBeatriz entregou as provas e gabarito do vestibular a uma das assistentes. Aos 17 anos, já estava certa da escolha de cursar Letras. As professoras de redação e literatura fizeram um bom trabalho durante o ensino médio e ela se encantou pela área. Em meio a conferência das tantas assinaturas e documento, a burocracia foi mais longe:
– Nossa, você é homem ou mulher?
A estudante se resignou. Não respondeu.
– Está tudo certo com os documentos.
Esta seria apenas a primeira batalha com a Unicamp. “Se eu fosse mais neurótica, cogitaria na hipótese de ela me prejudicar, se vai ficar se perguntando se eu, sou eu mesma”, pensou.
Era início de 2011 e Beatriz Pagliarini Bagagli possuía outro nome civil. Um nome em rima com “Bia”, o apelido destacado na página pessoal do Facebook.
Encontro-a em uma tarde no começo de abril. Mais de cinco anos depois daquela prova, o discurso alcançou o nível acadêmico e militante. Normatividade, naturalização, normatização, palavras de quem é analista de discursos, são intercaladas com um tímido “assim” para conectar as frases, um escape de vício verbal dos 23 anos.
Bia é habitué dos corredores do IEL (Instituto de Estudos da Linguagem). Passa maior parte do tempo dentro da Unicamp, hoje como aluna especial de Literatura de Testemunho, disciplina do estudo na narrativa como expurgo de traumas. Acabara de terminar “ Isto é um homem?” de Primo Levi.

‘A necessidade de contar “aos outros”, de tornar “os outros” participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa’ necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência.’ PRIMO, Levy. É isto o homem? pag. 2)

O discurso florescido na graduação é dela e de mais gente. Falar em primeira pessoa agora é desafio. Nascida em Botucatu, a cerca de 240 km da capital paulista, Bia nasceu para o que a sociedade impõe como ser menino, mas é menina.
Tem cabelos castanhos compridos, sobrancelhas feita por design que combina as feições de um rosto longo e ajuda a destacar os olhos esverdeados, o nariz levemente côncavo e a boca bem marcada. Sem esforços de “carão” rendem boas selfies. Logo ao chegar já deixa os óculos para miopia apoiados na mesa. As lentes também não parecem na maioria das fotos.
Neste outono com cara de verão, veste saia jeans rodada e uma blusa branca com detalhes em renda nas mangas e tênis esportivo. Se vestir, o básico nosso de cada dia, nem sempre foi fácil.
Bia dispara frases com braços apoiado em uma mesa branca de plástico próximo a uma lanchonete do instituto. Gesticula muito as mãos. Talvez seja aquela herança italiana. Ou apenas uma forma de carregar a timidez da fala para os gestos.
– Eu queria transicionar, mas não tinha recursos materiais, psicológicos. É limbo existencial angustiante.

Na infância, essa percepção veio mais instintiva. E claro, sofreu bullying na escola. A garota estudava em um colégio particular-católico. Daqueles tradicionais que separam as garotas dos garotos até pelo esporte. Educação física era de dar frio na barriga.
– Até hoje me sinto travada fisicamente porque não queria jogar nada. Me sentia agredida.
Questionar um designo não é tarefa fácil. Socialmente nascemos machos e fêmeas. Socialmente somos, nos é imposta essa identidade. Azul e Rosa. Esconde-se na intimidade desejos, crises e medo. Muitos deles, refugiados na internet. Foi lá que Bia descobriu o feminismo. No universo on-line mergulhou em fóruns e leituras.
A intimidade com a rede mundial foi a porta também na Unicamp. Aprovada no vestibular, partiu do interior de 115 mil habitantes para Campinas, a metrópole cravada a 80 quilômetros de São Paulo e morada de mais de um milhão e cem mil pessoas.
Logo entrou para o GDU (Gays da Unicamp), grupo formado por alunos para discussão da identidade de gênero, combate ao preconceito e promoção de evento como a Calourada Colorida, parte da recepção dos alunos desde 2011.
O começo da faculdade foi mais solitário, morando em um pensionato. Por aqueles encontros que ainda há de se ter alguma explicação, logo nos primeiros meses de faculdade conheceu Jaqueline Ramirez, artista de circo, drag queen, professora de espanhol e estudante de pós-doutorado.
– Me aproximei da Bia pela estética mesmo. Ela era andrógina. Tinha uma áurea de mistério.
Juntos no GDU, eles ouviram termos até agora restritos ao ambiente da academia como cisgênero.

bisexual-683939_640Cis prefiro
do lat. cis – da prep.lat cis ‘aquém, da parte de cá de ‘

Cis: mulher/homem nascida(o) e autoidentificada(o) como mulher/homem; Trans: quando as identidades se cruzam. Um guarda-chuva para transexuais, travestis, drag queens e outras identidades formadas pelo complexo ser humano. Estas reuniões do GDU pegaram de jeito Bia e Jaqueline.
– Descobrimos esses termos juntos. E a Bia se aprofundou muito.
Durante todo este primeiro ano de caloura descortinou termos, teorias e cansou. Cansou-se de uma feminismo que só aceitava mulheres – ‘um feminismo bucetista’ – dos próprios LGBTs com piadas transfóbicas online.
Enquanto transcorria o ano letivo de 2012, ela transformou o cansaço em fúria pelos teclados. Foi caçar treta nos companheiros de internet
Tátátátátátaátá
Bia ia lá e argumentava.
Lia tudo e problematizava.
A cada enter, discutia, educava, ouvia. Foi odiada mas também conquistava. Na velocidade dos teclados deslanchou, baixou guardas. Voltou para o segundo ano letivo e aos poucos construiu um novo propósito, agora cara a cara.
Bia bateu na porta do SAE (Serviço de Apoio aos Estudantes) e saiu de lá com garantia do advogado: um processo simples mudaria o nome civil para o social já no semestre seguinte.
A burocracia deu as caras e nada se moveu dentro da universidade. Em novembro, um pedido oficial o protocolo 22302/2012 foi enviado à Diretoria Acadêmica. Chegou março de 2013 e nada.
– Hoje eu me pergunto: como pude suportar tudo isso?
A estudante jogou as caras na internet. Ela já colaborava para o blog transfemismo e se dedicava a associar a teorias feministas no mundo dos trans. Aproveitou o espaço de 150 acessos diários e denunciou a demora da faculdade em acatar o pedido.

‘É inaceitável que a Unicamp não se apresse para acatar meu pedido, visto que é um direito humano básico à identidade e não pode ser negociável e protelado tampouco pode estar sujeito a questões como alta ou baixa demanda. Igualmente execrável é uma aparente negligência por parte da Unicamp que através desta atitude continua reproduzindo uma política higienista que relega a pessoas transgêneras (travestis e transexuais) a morte simbólica e exclusão. Ao reiterar que a Universidade não é um espaço inclusivo e seguro para essas pessoas, a Unicamp assume uma política institucionalmente transfóbica. Pessoas transgêneras precisam ter seus nomes sociais legitimados institucionalmente, caso contrário, estarão sendo marginalizadas. A falta da inserção do nome social gera consequências práticas: expõe os alunos transgêneros a possível humilhação e extrema ansiedade na hora de se engajarem em procedimentos burocráticos aparentemente banais e naturalizados para pessoas cisgêneras (aquelas que não são transgêneras) tais como lista de presença, chamadas, provas, trabalhos, etc. ‘

Ela deu três portarias: uma municipal, um estadual e outra federal. O direito era garantido desde 2010. Ninguém na Unicamp jamais havia pedido por ele.
Eu fui de fato a primeira pessoa a conseguir e a pedir isso.
Logo no começo de abril veio a confirmação do uso do nome social. Aceitar não foi fruto de grandes comemorações. É mesmo obrigação. A garota não se intimidou ainda a fazer críticas.
Usou o mesmo blog. Chamou a medida do nome social adotado pela universidade de apartheid trans. O nome social vinha ao lado do nome civil. Na documentação externa Beatriz viria depois do nome de registro.

“Venho expressar meu repúdio contra a própria lei estadual que foi utilizada para endossar o uso do nome social na Unicamp e a forma como a instituição se fez “obrigada” a aceitá-la e implementá-la dessa forma acrítica, fazendo nenhum esforço para executá-la de forma diferente da proposta no decreto. O nome civil não representa estas pessoas, logo, a insistência em mencioná-lo é uma forma de agressão simbólica.“

– A Unicamp não adotou o nome social por ser boazinha, adotou por que ela era obrigada por lei.
A Diretoria Acadêmica foi obrigada a se adequar. Criaram um campo na informática para o nome social. E hoje basta preencher no site da instituição o registro acadêmico, nome, e-mail, documento de identidade, CPF, telefone, o código e nome do curso, o nome social a ser incluído e selecionar a opção “sim”: Opto pela emissão de documentos oficiais de uso externo da Universidade com o prenome anotado no Registro Civil, acompanhado do Prenome Social.
Botar em um simples formulário um pedido tão complexo vem com advertência. Aquela medida que Bia criticou está lá, antes de você escolher pelo “sim”.

“No caso de documentos oficiais de uso externo ao âmbito da Universidade, o prenome anotado no Registro Civil será acompanhado do prenome escolhido, mediante opção.
Os documentos gerados anteriormente à efetivação do nome social refletirão apenas o nome do registro civil”.

Agora essa discussão é de peixe grande. A Unicamp poderá ser obrigada a apagar esta advertência caso o Projeto de Lei Complementar 5002/2013 de autoria dos deputados federais Jean Wyllys (PSOL/RJ) e Érika Kokay (PT/DF) for aprovado.
A proposta conhecida como Lei João Nery indica que qualquer pessoa poderá alterar o nome do registro civil e o gênero se for maior de idade e a apresentar por escrito a solicitação junto com o novo nome.
O texto foi inspirado e batizado em homenagem ao primeiro transexual a fazer cirurgia da mudança de sexo no Brasil. João Nery nasceu Joana. E assim viveu por quase trinta anos. Quando resolveu mudar o gênero perdeu todos os direitos. De psicólogo, foi pedreiro, taxista e partiu para a clandestinidade. Adotou uma identidade sem respaldo judicial o que tornava culpado em crime de dupla identidade.
Quando julgava o crime prescrito, João lançou o livro Viagem Solitária. Contou toda a saga, deu dezenas de entrevistas e agora virou nome de projeto de lei. Mas seu currículo jamais foi revisto. Continua um analfabeto aos olhos do oficialismo.
Esta exclusão tão comum as pessoas trans. Não faz parte da vida de Bia. Ela é uma exceção.
– Eu tive uma condição bastante privilegiada de aceitação familiar. Não que tenha sido simples no começo. Mas eu não fui expulsa de casa, por exemplo.
Aliás, em casa, é o único lugar que ela tolera ainda ouvir o nome de registro.
– Em público eles me chamam de Bia. Mas eu até aceito em casa quando minha mãe me chama pelo nome antigo. É até estranho isso acontecer, mas eu não ligo.
Se a resistência existe na nomenclatura, outras barreiras foram ficando pelo caminho. Como comprar roupas.
– Eu e minha mãe já saímos para comprar roupas. É muito bom isto não ser um problema.
Até chegar neste ponto demorou. Para os cisgêneros comprar a própria vestimenta é tão banal e espontâneo quanto escovar os dentes. Para um trans é um desafio no começo.
-Eu só consegui me empoderar de escolher as roupas que eu realmente goste quando mudei para Campinas. A primeira vez que você escolhe uma roupa diferente é uma coisa!
-E qual foi a primeira roupa que você escolheu?
– Agora eu já nem lembro né, mas eu tive ajuda de amigos aqui…

Beatriz não lembra da primeira roupa nem de como e nem quando contou aos pais que era uma mulher.
– De certa forma foi uma construção constante. Teve um momento que foi um marco.. Ai.. Eu não sei, viu? São imagens meio dispersas.
Esse deixa para lá é um opção para esquecer momentos de incompreensão. No começo a aceitação foi difícil. Nunca faltou apoio. Bia enxerga essa dificuldade como resposta a situação nunca ser esperada socialmente. Tinha 18 anos quando procurou um psicólogo para ajudar no diálogo com a família. Hoje ainda sente uma dificuldade em se abrir mas volta à terra natal constantemente.

– O importante é que no cotidiano eu construí uma relação boa com eles.
Do núcleo familiar do Botucatu, hoje ela também encontra em Campinas o que chama de lar. Divide uma casa no distrito de Barão Geraldo, onde fica a Unicamp, com Jaqueline e o namorado, Daniel.
Juntos eles conversam todas as noites. Tudo é debatido.
– A gente se fortalece. A gente alcançou um nível de debate em minha casa que é difícil de ser compreendido – conta Jaqueline.
Há pelo menos cinco anos dividindo o mesmo teto, Jaqueline e Bia, são mesmo unha e carne. Se protegem, se ajudam. Da parte de Bia, Jaqueline é o círculo mais íntimo, já que outras áreas de relacionamento estão por enquanto áridas.
– Não namoro. Essa é uma área bem deserta na minha vida. Não tive relacionamentos.
Ela credita a solidão a uma questão das pessoas trans, mas também se considera mais solitária. Um dos hobbies dela é caminhar sozinha..
– Para quem sente falta, penso que é difícil. As pessoas que estão fora de padrões estéticos encontram mesmo dificuldades para se relacionarem.
Namoro não faz falta, mas a leitura. Essa ela não fica sem. Afundada em leituras – a maioria delas teóricas – ela quer fincar ainda mais posição na Unicamp.
– Eu quero continuar nas pesquisas e articular teorias acadêmicas com feminismo.
A mulher que conseguiu mudar uma padrão de comportamento de uma instituição cinquentona e que denuncia preconceitos no perfil online quer ficar longe de partidos e da exposição pública
– Me vejo mais inserida aqui do que em política.
Não que a batalha tenha acabado. Ainda não se tem notícia de professores trans na universidade. Na Biblioteca da instituição existem 2.022 teses disponíveis sobre o tema “transexual”. A maioria dos estudos é da área da saúde. Um oásis perto da produção da PUC-Campinas. Na biblioteca apenas dois títulos constam o tema. É essa a nova batalha que Bia enxerga de agora pra dez anos.
– Eu tento assimilar para construir um espaço que seja confortável. Parto do nada. É uma coisa árida. Questões trans na academia são recentes.
Já passa das seis da noite, Bia começa a ficar impaciente. Quando encerramos a conversa ela logo levanta e segue para a escada que sai do prédio do instituto e dá para o ciclo básico. Uma praça gigante criada para ser o perímetro dos edifícios das faculdades. Beatriz pega a pequena mochila. É ali que esconde várias armas do conhecimento. Com munição já nas costas, rasga a pé o coração da Unicamp.