Coletivo Vermelha foto 1 (1)Coletivo Vermelha- formado por cineastas- promove encontro “Quem tem medo das mulheres no audiovisual?”, no MIS-Campinas, nesta quinta-feira e no MIS-SP no sábado e no domingo. Entrada gratuita

Por Amanda Cotrim

Estamos no século XXI, no ano de 2016: o século da palavra e da imagem, com internet, redes sociais e muita tecnologia. Em tese, todos falam e todos são ouvidos. Certo? Errado. Tudo vai depender de quem fala nesse jogo; se for uma mulher, seu lugar de fala é ignorado. Mas isso é sutil, quase imperceptível, no entanto esse silêncio está aí: seja pelo excesso de algumas palavras ou pela falta de outras.

Mesmo a discriminação por gênero sendo um fato social, essa problemática se manifesta de diferentes formas. Em 2016, o principal obstáculo para a mulher no audiovisual é ser ouvida; “muitas pessoas prestam mais atenção nas palavras ditas por um homem, ainda que o mesmo conteúdo já tenha sido dito por uma mulher”. Isso é o que pensa o Coletivo Vermelha, criado em São Paulo, em 2014, que reúne diretoras e roteiristas, com o objetivo de estudar e entender qual espaço ocupam as mulheres no meio audiovisual. No DNA do grupo está a desejo de construir espaços de reflexão e formação, fomentando o debate público a partir de olhares feministas e contribuindo para com a mobilização social. Um desses debates acontecem em Campinas, no dia 17 de março e em São Paulo, nos dias 19 e 20 do mesmo mês.

Confira a entrevista com o Coletivo Vermelha sobre a representação da mulher no cinema, as referências estéticas que contribuem para a perpetuação de estereótipos, a discriminação em set de filmagem, entre outros assuntos.

1) Como surgiu a ideia do ciclo de debates “Quem tem medo da mulher no audiovisual” e por que Campinas foi incluída nesse “roteiro”?

A desigualdade de gêneros no audiovisual existe desde a criação do cinema. Estamos em um momento em que essa desigualdade vem sendo questionada internacionalmente e também no Brasil. Discutir e pensar a representação feminina é um primeiro passo para tomarmos pé do cenário atual como roteiristas, diretoras, produtoras e comunicadoras, e é uma maneira de começarmos a reescrever a história desde outro lugar.
A ideia do debate surgiu de uma análise de que, apesar dessa discussão ter tomado um corpo significativo no último ano no Brasil, ela ainda está imatura. Detectamos três frentes de discussão sobre a mulher e o audiovisual que se fazem urgentes: a disparidade de gênero e raça nos postos de trabalho; os estereótipos de representação feminina na produção de conteúdo; e, por fim, a necessidade de políticas públicas, assim como de iniciativas civis, que criem espaços de debate, de formação e que encontrem mecanismos para corrigir essa desigualdade que foi naturalizada, mas que de natural não tem nada.
Entendemos que a troca de experiências e pensamentos entre mulheres do audiovisual e pesquisadoras, ativistas e intelectuais de outras áreas é fundamental e urgente.
No Coletivo Vermelha, somos todas de São Paulo, mas o PROAC (Programa de Ação Cultural) premia projetos que ampliam as ações de formação contempladas para outras regiões do Estado, o que julgamos ser algo muito pertinente. Com esse objetivo de descentralizar o debate, buscamos encontrar uma cidade na qual já existisse um movimento de audiovisual e algum centro de educação com formação na área audiovisual, para que o diálogo fosse produtivo. Campinas nos pareceu ser esse lugar, pois concentra uma quantidade significativa de produtoras, tem a Unicamp com cursos de artes visuais, comunicação social e midialogia, multimeios, além do Núcleo PAGU. Tem também a FACAMP, com muitos cursos voltados para comunicação, etc. Campinas tem uma cena cultural forte, com grupos de dança e teatro, e acreditamos que a discussão que estamos propondo dialoga com outras áreas da criação artística. Além disso, Campinas também é um lugar que pode atrair público de cidades vizinhas.

2) Um dos temas que será abordado durante o evento no MIS Campinas recebe o título “Nem príncipes e nem princesas: o impacto da produção audiovisual para crianças na manutenção ou transformação dos estereótipos de gênero”. Por que decidiram falar sobre isso?

O audiovisual faz parte, em maior ou menor medida, do cotidiano das crianças que, segundo pesquisas recentes, consomem um grande volume de material audiovisual; seja na televisão, em computadores ou em celulares. O conteúdo de filmes, jogos, desenhos animados etc. é, desde muito cedo, parte do repertório de referências estéticas, comportamentais e formadoras de identidades. Assim sendo, acreditamos que é muito importante olhar criticamente para esse material, com o intuito de entender até que ponto tais narrativas geram e reproduzem estereótipos e preconceitos raciais, sociais, sexuais e comportamentais. Entender como a construção dos gêneros é desenhada já nos filmes e programas de TV infantis é necessário para tentarmos imaginar e propôr narrativas e linguagens que façam um contraponto a estes estereótipos.

3) O que é ser mulher para o Coletivo Vermelha?

Podemos responder com um video da cineasta francesa Agnes Varda. Ele é dos anos 1970, pré realidades transexuais, mas lança perguntas interessantes. No mais, achamos que uma mulher pode ser o que ela quiser.

4) Qual é o maior obstáculo para as mulheres que trabalham com audiovisual no Brasil?

As mulheres são minoria no mundo audiovisual, então, o primeiro obstáculo é entrar. Se você for negra, ou indígena, é mais difícil ainda. Já trabalhando no meio, os obstáculos são muitos, mas talvez o principal deles seja ser ouvida. No dia a dia do set, nas reuniões de produção, nas mesas de roteiro, nas comissões de seleção de projetos. Isso não é prerrogativa exclusiva do meio audiovisual, mas ainda hoje, em pleno 2016, muitas pessoas prestam mais atenção nas palavras ditas por um homem, ainda que o mesmo conteúdo já tenha sido expresso por uma mulher. Há um caso recente nos EUA de uma diretora de teatro que realizou a mudança de sexo e tornou-se homem. Ele conta que foi após mudar de sexo que se deu conta do quanto o tratamento em relação aos homens é diferente do tratamento em relação às mulheres: as pessoas param para prestar muito mais atenção no que ele fala como diretor homem, do que quando era uma mulher.

5) Um artigo publicado na revista “Conexão- Comunicação e Cultura” afirma que o lugar da mulher no cinema é, historicamente, de objeto e nunca de sujeito. O que pensam sobre isso?

Nós ainda não conhecemos o artigo, vamos correr atrás. De qualquer modo, provavelmente ele tem como base o texto “Prazer sexual e cinema narrativo” (1973), da teórica inglesa Laura Mulvey, em que ela analisa o cinema clássico hollywoodiano. É muito interessante como ela demonstra, analisando não só temas e personagens, como também enquadramentos, pontos de vista etc esse lugar da mulher como objeto e a construção do olhar voyer no cinema moderno. Podemos dizer que muito desse estudo inicial, que foi reelaborado ao longo dos anos, infelizmente permanece vigente, principalmente se continuarmos olhando para Hollywood. Mas não podemos dizer que é uma regra e que a mulher nunca tenha papel de sujeito, há muitas narrativas para além do cinema moderno que deslocam esse olhar. A outra mesa de Campinas “Olhar feminino: isso existe?” vai passar por esta questão, assim como a mesa “Roteiro e gênero: a criação de personagens femininos e a autoria feminina”, no dia 20, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo

6) O cinema, mais do que a “expressão” do pensamento da sociedade, é um mecanismo para que a sociedade continue a se expressar de uma determinada forma e não de outra. Como o Coletivo Vermelha avalia a importância do cinema enquanto sistema de significante?

Não sabemos se o cinema tem o poder de transformar o mundo. Provavelmente não. Mas não podemos ser inocentes de achar que, ao fazer filmes, não estamos trabalhando a partir e sobre o imaginário e os valores coletivos e históricos. A questão é que, se não pararmos para pensar no cinema que estamos fazendo, acabamos reproduzindo alguns lugares comuns – e isto não é só em relação à visão que o cinema tem das mulheres. Isto se dá também com relação aos olhares produzidos sobre os homens, os negros, os índios, etc.
Como cineastas, estamos o tempo todo criando narrativas, imaginando e reimaginando gêneros e visões de mundo. Neste sentido, pensamos que não apenas é preciso ter mais mulheres atrás e na frente das câmeras. Se achássemos que isto automaticamente produziria “olhares femininos” estaríamos simplificando a questão, ao dizer que um olhar determinado é necessariamente inerente a um gênero. Estamos num esforço de olhá-la historicamente. E, como diz Karla Bessa, que estará conosco em Campinas: é preciso pensar com liberdade.
Precisamos mudar a forma como as personagens femininas são construídas e reiteradas diariamente nos diferentes meios: cinema, tv, games etc. Talvez isto abra, sim, uma fenda no imaginário e crie outras possibilidades para nós, mulheres, sermos o que queremos.
E, quem sabe, quando estivermos contando outras histórias de mulheres, de outras formas e de outros pontos de vista, isto abra possibilidades para alguma transformação no mundo, nas mulheres, nos homens…

7) Maquiagem, Fotografia, Montagem, Direção de Arte…todos esses “elementos” têm um certo discurso, uma certa razão para existir de determinada forma. Pensar sobre a mulher no audiovisual também não seria interrogar esses “elementos” audiovisuais?

Certamente. Olhar para a forma na mesma medida em que olhamos para o conteúdo. Mesmo porque eles são inseparáveis. E, sem dúvida, estética é política.

8) Como o Coletivo Vermelha avalia a questão da representação da mulher no cinema brasileiro em relação a outros países da América Latina?

Não temos dados concretos sobre isso ainda. Mas a nossa percepção é a de que a América Latina é um território bastante marcado pelo machismo e pelo racismo, e o audiovisual não foge a essa realidade. Talvez, em termos quantitativos, como a Argentina é um país que tem uma presença de mulheres no mercado um pouco maior que em outros países, isso poderia indicar uma maior representatividade também nos filmes. Não temos, porém, dados qualitativos. Segundo nossos dados subjetivos, como espectadoras, a gente entende que há exceções, mas via de regra a representação feminina ainda esbarra em estereótipos, clichês e padrões de beleza.

9) Esse debate sobre a questão de gênero no audiovisual está sendo feito em países com certa tradição cinematográfica, como Argentina, Chile e Cuba?

Acreditamos que sim. Em Cuba, por exemplo, existe um questionamento, acompanhado pela reivindicação de uma lei do audiovisual, sobre a pouca presença histórica de mulheres no ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica). Recentemente pudemos ler um artigo sobre cineastas cubanas que citava a diretora feminista Mayra Vilasís, que disse uma vez que em Cuba era mais fácil ser pilota de avião que diretora de cinema. Apesar de a Revolução ter trazido uma ampliação da participação da mulher em diversas áreas e um fortalecimento do feminismo em Cuba, o país continua sendo bastante machista. O artigo, que fala também sobre cineastas cubanas contemporâneas, é este AQUI.

10) As mulheres que trabalham com audiovisual no Brasil ganham menos do que os homens?

Nós não temos esses dados, mas de maneira geral as mulheres ganham menos do que os homens e o audiovisual não deve fugir à regra. Agora, por que isso acontece? Porque vivemos em uma sociedade que ainda lida com a mulher como sendo uma cidadã de segunda categoria, menos qualificada.

11) Vocês, enquanto mulheres que trabalham com audiovisual, já presenciaram abusos ou sofreram discriminação de gênero? Poderiam nos contar?

Certamente é um assunto delicado. O #MeuPrimeiroAssédio é uma campanha crucial neste sentido e chamou atenção para formas de abuso que estão completamente naturalizadas em nosso cotidiano. Muito provavelmente, se fizermos uma campanha semelhante dentro dos sets de filmagem e da indústria cinematográfica como um todo, seguramente virão à tona uma serie de experiências cotidianas que nos ajudariam a começar a ver muita coisa. Costumamos dizer que o set de filmagem muitas vezes reproduz, quase como um microcosmos, as relações sociais que nos cercam – e, portanto, as de poder e de preconceito. Com #MeuPrimeiroAssedio, nos demos conta de que muitas atitudes, a princípio corriqueiras, participam de uma lógica que reproduz largamente a ideia de que a mulher estaria numa posição inferior a do homem. Como em #MeuPrimeiroAssedio, seria como se estivessemos começando a ver no mundo o que um livro muito utilizado pelos movimentos sociais nos anos 70 já denunciava: Mulher, objeto de cama, mesa e banho. Estamos em 2016, mas por vezes nos parece que precisamos levantar as bandeiras dos anos 60 e 70. É só olharmos o “escândalo” produzido pelo fato de Simone Beauvoir ser tema no ENEM de 2015)
Concretamente, podemos citar o caso de uma das mulheres do coletivo. Numa filmagem em que ela estava, o diretor entra na van com toda a equipe de filmagem e diz: “Essa noite comi tanto a minha mulher que a buceta dela ficou até ralada”. Daria para nos perguntarmos qual o sentido desta fala se não estabelecer uma relação de poder – ou afirmação – que vem do fato dele ser homem? Esse era o código que ele estabelecia para ser respeitado pela equipe, desconsiderando completamente a presença de outra mulher no ambiente, ou melhor, tentando intimidar. Como uma mulher se sente nesse momento? Como ela faz para mudar o quadro e poder ser respeitada? Esse é apenas um exemplo, bastante simples aliás, porque o problema é estrutural, e pode se manifestar de maneiras bem mais sutis, ou mesmo muito mais violentas. A desqualificação ou sexualização é constante.

12) Existe diferença no trabalho feito por mulher ou por homem, pensando especificamente na direção e no roteiro?

É algo que vale a pena ser estudado e temos uma mesa discutindo isso aqui em Campinas chamada “Olhar feminino: isso existe?”. Acreditamos que pessoas que vivem contextos e universos diferentes trazem essas experiências no momento da construção criativa. Ou seja, uma realizadora que nasceu e viveu em uma realidade de periferia vai ter um olhar diferente daquela realizadora de classe média. Mas o fato de ser mulher simplesmente não garante que ela terá um tipo de olhar específico, que construirá personagens femininos mais interessantes e complexos. Todos nós, homens e mulheres, fomos formados dentro de um mesmo sistema de valores do patriarcado. Apenas no momento em que tomarmos consciência dos valores que estamos reproduzindo ao criar de uma maneira ou de outra é que podemos transformar essa realidade. Mais uma vez, voltamos à importância da formação crítica.

13) Qual é a expectativa para o evento em Campinas e em São Paulo?

Esperamos que seja um espaço para pensar, aprofundar o debate, levantar perguntas, ampliar horizontes e plantar propostas. Queremos que as trocas sejam feitas com o maior número possível de pessoas, que tragam diferentes pontos de vista. Registraremos os debates e os divulgaremos amplamente, para que sejam vistos e ouvidos depois do evento.

14) Poderiam dar dicas para os leitores de filmes feitos por mulheres ou sobre mulheres na América Latina?

Podemos fazer uma lista de acordo com nossos gostos pessoais, que mesmo dentro do grupo não são unânimes (ainda bem!). Além disso, sabemos que ainda temos muito por conhecer. Para começar pelo Brasil, há, sem dúvidas, vozes importantes despontando, como Tata Amaral, Anna Muylaert, Petra Costa, Ana Carolina, Juliana Rojas, e muitas outras. Nos outros países latinos, nos vêm à mente a Lucrécia Martel (Argentina), Sara Gomez (Cuba), Mariana Rondón (Venezuela), Alicia Scherson (Chile), Claudia Llosa (Peru), Mariana Viñoles (Uruguai). Alguns filmes sobre mulheres latino-americanas que achamos interessantes são o chileno “Violeta foi para o céu”, o documentário “María en tierra de nadie”, da diretora salvadorenha Marcela Zamora, “XXY”, da argentina Lucia Puenzo, “Dólares de Areia”, da dominicana Laura Amélia Guzmán, “La Once”, da chilena Maite Alberdi.