Por Cida Sepulveda

Em entrevista exclusiva, o jornalista e escritor José Castello conta de suas influências, de sua literatura e do processo criativo. Castello, que trabalhou em vários grandes revistas e jornais brasileiros, diz que tem dois hábitos para escrever: rascunha literatura à mão e faz jornalismo direto no computador.  Castello ganhou o prêmio Jabuti 2011 com o romance Ribamar. Algumas de suas obras são: Vinicius de Moraes, o poeta da paixão (biografia, Companhia das Letras), João Cabral de Melo Neto, o homem sem alma (Rocco), Pelé, os dez corações do rei (Ediouro) e As melhores crônicas de José Castello (Global). Atualmente, escreve para O Globo. Fala, José Castello:

Quando e como a literatura nasce para você?

castello 01 R _ A origem de uma paixão é sempre um enigma. Posso apenas fazer uma tentativa de aproximação. Desde menino muito pequeno, ouvia histórias de fadas antes de dormir, lidas por minha madrinha Maria da Paz. As histórias me mobilizavam muito. Um pouco mais velho, comecei a eu mesmo ler histórias de fadas. Há também um fator subjetivo: fui um menino muito tímido e, em consequência, muito contemplativo. Ficava longo tempo sozinho e para preencher meu vazio – e combater meus medos – contava histórias para mim mesmo. Creio que o amor à literatura nasce nessas pequenas coisas, e não nas grandes. Disso tudo, veio a vontade de escrever também, de ser escritor, que apareceu em torno dos 10, 11 anos, e que se relaciona com o grande impacto que me provocou a leitura do Robinson Crusoe, de Defoe.

 Das suas atividades relacionadas ao jornalismo literário e à literatura, quais são (ou qual é) as suas prediletas?

 R _ Tudo depende do momento. É tudo muito instintivo, pelo menos no meu caso. E nem sempre as coisas têm lógica. Meu gênero predileto como leitor é a poesia – e nunca pensei em escrever poemas. São coisas que não se explicam muito bem. Outro exemplo: a princípio, o tamanho de 6 mil caracteres da coluna do Globo me incomoda. Mas isso é só meia verdade! O tamanho referência dos capítulos do “Ribamar” é também de 6 mil toques. As crônicas que escrevi por longo tempo para o site Vida Breve, mesmo sem eu decidir isso, têm sempre aproximadamente 6 mil toques também. O que parece prisão é libertação.

Fazendo um balanço de sua história como escritor brasileiro, o que mais lhe chama a atenção, positiva ou negativamente?

R _ O mais complicado em minha vida de escritor, e que determinou indiretamente muita coisa que escrevi, é o impasse entre a vida agitada e frenética de jornalista e a lentidão que a literatura exige.  Escrever exige silêncio – no entanto passei boa parte de minha vida dentro de redações imensas e barulhentas. Nelas, conseguia fazer meu trabalho, mas não conseguia escrever o que queria. Os onze livros que publiquei foram escritos depois que abandonei a vida formal de jornalista, em torno dos 40 anos de idade. Tirando a biografia do Vinicius, escrita no Rio de Janeiro, todos os outros foram escritos aqui em Curitiba, onde vivo uma vida mais isolada, mais lenta, mais silenciosa. Também é estranha minha relação com Curitiba. Sigo um pouco a fórmula do Cristovão Tezza, meu grande amigo, que disse uma vez que “para ser feliz em Curitiba é preciso viver em Curitiba fingindo que você não vive em Curitiba”. Ele e eu somos dois caras que saímos pouquíssimo de casa. Que temos relações de amizade muito restritas. Isso é um pouco efeito do temperamento da cidade. Mas é também uma estratégia para escrever.

 Em algum momento da vida você pensou em desistir da literatura?

 R _ Acho que não. Às vezes, em alguns momentos em que estou mais desanimado com o mercado, com a vida literária, etc, me dá, sim, vontade de parar de publicar. De me recolher a um “silêncio social”. O que é impossível porque não tenho outra profissão, vivo do que escrevo. Mas nunca pensei em parar de escrever e acho, para ser sincero, que não conseguiria. Sou meio obsessivo nisso. Vivo carregando caderninhos, anotando nas margens dos livros que leio, rascunhando em cadernos. Isso é minha vida.

 Suas crônicas/contos são textos simples. Poderiam ser mais populares. Por que não o são?

 R _ Parece que quem deve responder a essa pergunta é o leitor. Talvez os editores. Busco, de fato, uma linguagem simples, emotiva, direta. Mas os temas de que trato nem sempre são simples ou fáceis. Talvez, pela forma mais simples em que eles aparecem, se tornem mais escandalosos. É a única coisa que me ocorre dizer.

Seus textos mais recentes publicados no blog do jornal “O Globo” cresceram muito em densidade psicológica e poética em relação aos textos do seu livro “Melhores crônicas”. A que você atribui esse crescimento?

 R_ Fico muito feliz com seu comentário porque ele me faz acreditar que não estou estagnado. Escritores devem estar sempre em transformação _ ou irão apenas repetir e repetir. Tudo, certamente, se relaciona com as transformações de minha vida pessoal e, sobretudo, de minha vida mental. Escrevo o que sou. Livros são coisas que os escritores arrancam de dentro deles. Se você se agita, a escrita se agita também. Se olha para outra direção, ou mais direções, isso afeta também o que você escreve. 

 Em alguns contos do “Melhores crônicas”, em particular, no Traindo a minha empregada, eu capto a voz de Nelson Rodrigues. Nelson tem papel importante na sua formação de escritor?

 R _ Muito cedo, comecei a ler _ maravilhado _ as crônicas esportivas de Nelson Rodrigues. Embora tenha assistido a muitas montagens de suas peças de teatro, quase não as li. O Nelson que me marcou como leitor é o cronista. Dessa fase vem também a minha paixão pelo Fluminense. Sempre digo que tenho uma paixão literária por futebol. Nelson foi muito importante em minha adolescência. Eu não tinha amigos, era muito sozinho. Nelson foi talvez meu melhor amigo _ embora eu só o tenha conhecido já homem maduro, em uma entrevista jornalística.

 Qual a relevância do outro para seu processo criativo?

 R _ Sempre muito grande, certamente. Nesse aspecto, sigo uma lição que herdei de minha mãe, Lucy. Ela sempre me aconselhava a ouvir atentamente tudo o que os outros me diziam, por mais absurdo ou sem sentido que isso parecesse. “Depois você decide sozinho”, ela dizia, “mas você precisa conhecer, antes, todas as possibilidades”. A vida me deu a sorte de ter muitos e queridos amigos. A maior parte deles vem da infância, adolescência, ou da época de faculdade _ embora tenha feito alguns grandes amigos já maduros. Olhando com calma, percebo que eles são pessoas muito diferentes entre si. Isso não é um problema, ao contrário, isso me enriquece.

A psicoterapia tem papel fundamental nesse processo?

R _ Certamente sim. Entre 1971 e 76 fiz a célebre “análise de grupo”, que estava então muito na moda. Depois, ainda no Rio, entre 1979 e 1992 – por 13 anos! – fiz a psicanálise clássica, deitado em um divã. Em Curitiba, retomei uma análise, em freqüência semanal menor, mas que também tem sido muito fértil. Fiz quatro anos, interrompi por quatro ou cinco, voltei há três ou quatro anos, com a mesma psicanalista. Descrevo todos esses detalhes para que você entenda que é um longo caminho e que não tem como não me marcar. Se você somar todos os períodos, chego hoje a algo superior aos 25 anos de análise. Vou fazer 64 agora em fevereiro. É uma parte muito grande e importante de minha vida, que certamente marcou e marca as coisas que eu escrevo.

Como foi o processo de criação do romance Ribamar?

R _ Foi um caminho muito intenso e confuso. Levei quase cinco anos trabalhando no livro _ justamente os cinco anos em que interrompi a análise em Curitiba. Se isso tem algum significado? Provavelmente sim _ mas seria uma longuíssima conversa, que não cabe aqui. Eu escrevia caoticamente, em varias direções ao mesmo tempo. Cheguei a pensar que escrevia vários romances ao mesmo tempo. Só quando consegui estabelecer limites formais rígidos para o que escrevia, comecei a chegar a um texto compacto e único.

A necessidade e a busca de visibilidade e reconhecimento como artista interferem na sua liberdade de criação?

R _ Todo escritor quer reconhecimento. Lembro sempre da lição de Mário de Andrade: “Todo escritor escreve por vaidade. Se mostra é por vaidade. Se não mostra é por vaidade também”. Mas parece que hoje as coisas chegaram a dimensões assustadoras. É tudo um efeito de mercado _ da maneira como o mercado passou a tratar a literatura. Frequentemente recebo em minhas oficinas jovens escritores, muitos ainda inéditos, que já escrevem pensando em prêmios literários, traduções para o exterior, adaptações para o cinema. Há também a praga da tal “literatura internacional”, modelo de origem americana e inglesa, que produz uma infinidade de romances esquemáticos, previsíveis, parecidos – embora bem escritos. O reconhecimento e o sucesso tornaram-se uma obsessão dos escritores – e isso é algo muito nocivo. Insisto: em certa medida, com certo comedimento, esse é um desejo justo. Mas tudo se tornou uma loucura.

Você ainda escreve com papel e lápis/caneta?

R _ Escrevo meus textos para a imprensa diretamente no computador _ raramente rascunho alguma coisa à mão. Ao contrário, as primeiras versões de minhas ficções têm sido escritas, invariavelmente, à mão. Agora mesmo estou trabalhando no rascunho de um novo romance que já ocupa três cadernos.

Desejo e necessidade de criar, qual dos dois é mais significativo para você?

R _ O desejo. Você pode ter necessidade, mas se não tem desejo a coisa não avança. A necessidade se relaciona com a sobrevivência _ e sempre existem caminhos alternativos para isso. Mas o desejo não se substitui. O desejo é você.

Conheço grandes leitores que afirmam que a literatura brasileira é pobre, salvo exceção de alguns autores clássicos. Qual sua opinião a respeito?

R _ Sou bastante otimista nesse aspecto. Acho que temos grandes escritores sim. Vamos pensar nos poetas. Não vamos pensar nos grandes que nos deixaram recentemente, como Manoel de Barros e Hilda Hilst. Também não vamos pensar naqueles que já têm consagração definitiva, como Adélia Prado. Mas penso rapidamente em alguns nomes: Paulo Henriques Brito, Alberto Martins, Ana Maria Marques, Antonio Cícero, Eucanaã Ferraz, Marco Lucchesi, Lucinda Persona, Nuno Ramos. Certamente alguns muito importantes estão me escapando… Uma literatura que gera poetas dessa qualidade pode ser chamada de pobre? Só por quem não lê.

 Uma grande leitora jovem, livre das pressões do politicamente correto em literatura, certa vez me disse depois de ler algumas crônicas suas: parece aquele Borges, só que menos arrogante. Foi incrível porque eu considero você o Borges brasileiro. Outros já o identificaram desta forma?

R _ É um elogio muito amoroso, mas também muito exagerado. É verdade que comecei a ler Borges muito cedo, em espanhol e sem ter estudado o espanhol _ língua em que aprendi a ler sozinho. Lia com grande paixão, mas também com imensa dificuldade. Isso marca. Talvez em tenha aprendido com Borges algumas lições a respeito do estilo. Mas só isso, nada além disso. Só se começa a escrever com segurança quando se reconhece o próprio tamanho.