encontro
Encontro da minha turma…

Tudo vinha muito bem em minha vida, até que recebi a mensagem de um amigo esquecido pelo tempo, chamando para um encontro de turma. Já eram alguns anos de afastamento e não digo quantos nem sob tortura. Então, movido por algum sentimento infeliz, confirmei a presença. Até fiquei ansioso, contando os dias para a festança. O ser humano não aprende…

Seria no sítio do cidadão em questão, uma pessoa mistívula*, que no tempo da faculdade, nunca conquistou a confiança de ninguém, só porque seu olhar inspirava pouca confiança. Certa vez teve o nome envolvido no desaparecimento de 8 capivaras do lago Igapó e apesar de encontradas ossadas e uma arma de fabricação caseira, um punhal de capivara, em seu quintal, nada foi provado contra o Norman. Seu nome é Umberto, mas o apelidamos de Norman Bates.

Aproximando-se o dia do evento, vieram e-mails com especificações e um mapa, que, de cara, percebi se tratar de um engodo pra que apenas alguns escolhidos conseguissem chegar a sua teia. Dos 40 convidados que confirmaram a presença, apenas 10 apareceram. Imagino que uns 5 ainda estejam rodando sem destino pelos arredores de Mogi das Cruzes, mas sorte a deles…

O local era aprazível, não nego. O pântano que cercava a propriedade exalava um discreto odor de pântano, se comparado ao forte odor de pântano que vinha da casa. Chegamos de manhãzinha e a bruma envolvia a paisagem quando badalamos o sino do portão, por 3 vezes, até que os cães, Leão e Lobisomi, foram soltos e vieram felizes e espumando para morder o alambrado que nos separava graças a Deus da residência.

Norman apareceu na porta, calças amarradas com barbante na cintura, sandália havaiana no pé direito, camisa xadrez aberta e amarradinha na barriga. Minhas crianças choraram ao vê-lo. Constrangedor, mas compreensível. Colocou-nos para dentro de casa com um caloroso abraço e aquele olhar esquisitão. Estava acompanhado de seus ajudantes, Lis e Maicon, que mexiam alguma gororoba num caldeirão que mal cabia no fogão, ao ritmo de um sambão, que não paravam de cantar alto. Disseram que estavam adiantando as coisas pro churrasco e ficou um pouco daquela expressão de dúvida, grudada no meu rosto, até hoje.

Eu estava quase dizendo que tava ficando tarde, que precisava ir à reunião do condomínio, quando os outros convidados começaram a chegar, cada qual com sua barraquinha e seus comes e bebes.

Fiquei mesmo chocado ao ver como o tempo havia sido impiedoso com aquelas pessoas, mas eram meus amigos e não demonstrei o assombro. Guardadas as tralhas, agora era montar as barracas, atividade com nível de dificuldade máximo para a mulherada, quase como manobrar  um carro, então os rapazes armavam as barracas enquanto as moças lavavam a rúcula, tarefa impossível para um homem.

Conforme as pessoas iam chegando com suas crianças, os cachorros do Norman salivavam mais, se mostravam mais agressivos e exalavam um bodum insuportável, de modo que a reunião consistia, basicamente, em cuidar para que nossos filhos não fossem devorados ou ficassem fedidos para sempre. Revezávamo-nos na função de babás e domadores, para que alguns pudessem chegar até à churrasqueira e trazer algum tipo de mantimento.

A tarde chegou e o Sol foi baixando rápido, então Umberto decidiu prender os cães e fazer uma fogueira para espantar o frio. Imaginando as intensões do estranho colega, ficamos ainda mais aflitos com nossas crianças, mas o cicerone surpreendeu a todos, trazendo um pacote de marshmallows, que foi porcamente espetando em seu ferro de capivara e repousando sobre a brasa. Escurecera e fomos ficando mais relaxados, percebendo que apesar do olhar satânico, o Norman não queria nos fazer mal. Quando Gumercindo, o “Aquaman” chegou o frio já era intenso. Ficamos todos comovidos quando ele retirou sua barraca da embalagem e notou que, por engano trouxera uma piscina. Como somos muito amigos, ajudamos o distraído a montar sua piscininha no escuro e providenciamos cachaça, até que perdesse os sentidos, para que o frio não o incomodasse durante a madrugada. Pelo menos ele tinha as laterais protegidas e dormiu como um bebê no centro da estrutura emborrachada.

Cantamos, contamos causos e comemos marshmallows assados ao redor da fogueira. Ângela, envolvida pelo clima bucólico, dançava como uma feiticeira celta, e já meio tocada pelo espírito da natureza, pisava livremente sobre os excrementos dos cães e raspava o sapato na grama, mais para aliviar o peso, pois a catinga não saia mais. Senti piedade da coitada.

Minha esposa e filhas se recolheram mais cedo e eu, guerreiro da madrugada, continuei à volta da fogueira até que todos se fossem, inclusive o fogo. Quando fui para a barraca, o frio era cortante e percebi que tinha me sobrado o lugar do canto. Entende-se como lugar do canto, o lugar sem colchão, sem cobertas, com pedras e buracos no terreno, uma beleza de lugar!

Tive um sono picotado, até que, mais tarde, senti o aconchego do corpo de minha esposa, por certo preocupada com minha friagem, me abraçando fortemente. Era carinho demais, então fiquei curtindo o momento. Mais bem aquecido, adormeci. O Sol já incomodava quando ouvi de olhos fechados, a chegada de outros amigos para o almoço de domingo, mas como meu amorzinho ainda se aconchegava a meu corpo, fui ficando.

Norman apareceu à porta da barraca sem avisar, o que eu achei o cúmulo, pois podia nos ter encontrado em situação mais íntima. Entreabri os olhos e vi o anfitrião rindo e nos observando sorrateiro. Tive medo. Quando ele disse “ah, vocês estão aí!!” eu quis brigar, mas entendi. A verdade é que o travesseiro que eu abraçava calorosamente era o Leão e minha mulher era o Lobisomi, mas parecia que eu era mulher do Lobisomi, que me abraçava de conchinha. É… nada podia ser mais íntimo. Pedi que Norman não comentasse com ninguém e ele disse “tudo bem, todo mundo já viu mesmo, fui o último”.

Levantei-me com um péssimo humor e um cheiro ainda pior. Todos riam muito, mas eu mantive a amizade e eles mantiveram a distância, exceto Lobisomi, que parecia apaixonado pela minha perna esquerda. Sorte que sou destro. A festa foi rolando com muita alegria, lembranças maravilhosas, momentos de emoção, fotos antigas (não que sejamos antigos) e eu afastado, fingindo falar com um cliente ao celular por 4 horas. Vez ou outra, minhas filhas, tapando o narizinho, me apresentavam um naco de carne espetado no punhal de capivara.

Na hora da despedida, simulei um coma alcoólico para não submeter meus amigos ao constrangimento de terem que me abraçar. Quando a Seis e o Fê, com suas gêmeas, se despediram, Norman perguntou ao casal se iriam mesmo precisar das duas meninas em casa. Entreolharam-se e gargalharam. Eu entrei no carro, banco do passageiro, acenei de longe e aguardei minha família mais meia hora. Elas relutaram muito, mas acabaram adentrando ao veículo. Voltamos para casa em silêncio, mas minha cabeça estava a mil. A estrada, o anoitecer, o frio, a chuva fina e as janelas escancaradas me despertaram o desejo doentio de que um próximo encontro acontecesse o mais brevemente possível, talvez para me redimir, talvez porque eu morra de saudade de meus amigos. Vamos?

 

*Mistívula: Palavra inexistente até que minha filha de 4 anos inventasse, há 7 meses e que se enquadra perfeitamente no caráter do Norman.