download Comunico a quem possa interessar, que fui diagnosticado como portador de uma rara enfermidade. É tão rara a moléstia, que, modéstia à parte, até que faço gosto de possuí-la. Uma das poucas coisas minhas de verdade, meu mal é praticamente um bicho de pé, que, apesar de se saber cometido, o doente não quer ficar sem aquele agradável comichão no solado. Não é fácil assumir isso em público, mas, como sempre que posso, evito a hipocrisia, não me acobertarei sob máscaras que agradem aos olhos da sociedade.
Gosto de frequentar filas. Pronto, falei. Quanto maior e mais demorada, melhor. Motivos imbecis para a existência da fila também me atraem.
O médico especula que haja algum fator desencadeante, associado a um forte componente genético. Como pra ficar culpando meus pais pelos meus defeitos, já basta Freud, consegui relacionar o início dos meus sintomas a um episódio altamente suspeito que passei a chamar de “contágio inicial” .
Considero impossível para qualquer ser humano sair ileso de uma situação como aquela. Um alinhamento de planetas, ou a explosão de algum sol distante, ou a obra de uma legião de espíritos brincalhões ou a melhor pegadinha do malandro que esse país já viu, atuaram para deixar esta marca singular no meu ser.
Acordei e saí bem cedo naquele domingo, que é dia de dormir até tarde e ficar em casa, pois tive a inteligente ideia de ir ao postinho, buscar a receita do meu remédio de gota úrica, que o doutor achava que eu tinha, mas pelos exames não era e no final me curei sozinho, mas me tornei dependente psicológico daquele placebo.
Por crer que todos estariam em casa dormindo, me iludi que seria prontamente atendido. Acontece que naquela madrugada de sábado para domingo, o caos decidiu espalhar aquela incrível ideia que eu achava que era só minha, pelos sonhos de mais alguns doentes do bairro. Chegamos, eu e meu grupinho insalubre, todos com cara de espertos, antes do postinho abrir. E já havia fila.
Não entendo bem o motivo nem a forma de remuneração, mas algumas repartições públicas contam com uma fila 24 horas, fixa, de umas 20 pessoas, já efetivadas em concurso.
Nos instalamos no final dessa fila perene e logo, naturalmente, começamos a nos queixar da vida, menos eu, que sou feliz. Então, Raul, o gago, logo à minha frente, tombou o pescoço pro lado, olhou por 5 minutos o inicio estático da fila e voltou-se dizendo “Ih, vai demorar, hein!”.  Eu, sempre otimista e conciliador, expliquei que a demora era apenas até que abrissem as portas e começassem os atendimentos. Coincidentemente, logo ouvimos os portões se abrindo e em pouco mais de uma hora já estávamos todos sem aquelas caras de espertos, ainda em nossas posições originais.

Acho que as pessoas prestam concurso pra ocupantes de fila, só pra ficar sabendo que raio tá acontecendo lá na frente que a maldita não anda.  É natural das filas, sem querer, obviamente, longe de mim ser abelhudo pra ficar ouvindo a conversa dos outros, mas ficamos a par dos problemas que trouxeram nossos colegas de àquela infelicidade.
Raul, por exemplo, padecia de uma severa enterite, afecção que Raul transcreveu para nomenclatura de fila, como “caganeira nervosa”. Margareth carecia de ajustes em sua reposição hormonal. Ela dizia que eram “calores” e a tal carência era percebida em seus olhares. Dona Sidneia, a carola, sofria de enxaqueca, “uma dor de cabeça dos infernos” e também de suor excessivo, ou usava um modelo de camisa que realçava rodelas com cheiro nas axilas. E tinha o Sr. Romeu… ah, pobre Sr. Romeu, ele estava mal mesmo. Se algum de nós tinha a petulância de se considerar doente, o Sr. Romeu já tava com os dois pés no além. Tinha cor, cheiro e idade de gente morta e vegetava naquela fila como uma samambaia seca.
O clima estava tenso, cada um com seus problemas e eu percebia um tênue equilíbrio prestes a se quebrar. Aquele espera e a culpa de não ter a quem culpar, além de mim, por ter gerado aquela infeliz ideia, já estavam me deixando com o sistema nervoso (expressão que aprendi na fila).
Achei que a salvação estava surgindo quando Da. Sidneia tirou a bíblia da bolsa e começou a pregar a palavra do Senhor. Eu absorvia os ensinamentos em educado silêncio. Mas Raul olhou pra trás com o rosto suado e disse nervoso “Eu falei que-que-que ia de-demorar!”. Em tom evangélico eu pedi “calma, irmão, logo chegará nossa vez!” e Sidneia gritou “Os últimos serão os primeiros!!”. Então a fila andou milagrosamente, mas eram apenas três pessoas do pelotão de elite que deixaram seus postos pra ouvir a pregação de Sidneia, entre eles, um cadeirante, porque tem cota pra cadeirante nesse tipo de fila. Sidneia, empolgada com o público, mexia os braços exaltada e transpirava como um atleta enquanto nos catequizava.
Eu fui ficando meio impaciente, mas disfarcei quando Sidneia gritou que, quem não ouvisse suas palavras, era presa fácil para satanás. Gritava tanto, que pensei que se dependesse de ouvir as palavras dela pra se livrar do inferno, pecadores num raio de 2 km do postinho já estavam salvos.
Entretanto, claro, o capeta não ia deixar aquilo barato. Um pungente odor de enxofre empesteou o ambiente e deixou no chinelo o suor sagrado de Sidneia. Raul, branco e transfigurado, parecia ter sido o escolhido pelo demônio  para contra argumentar com a mulher, pois rugia com voz gutural “CA-CA-CALA A BOCA, PO-PO-PÔ! EU FA-FALEI QUE ESSA PO-PO-PORRA IA DEMO-MO-MORAR PACA-CA-CARAI!! SI-SI-SI-SICAGUEI, OH!”
Graças a Deus não era satanás, Raul estava apenas somatizando. Mas somatizou forte! O ambiente ficou insuportável e até o Sr. Romeu balbuciou algum protesto contra a catinga de Raul, se levantou a muito custo e tentou se afastar apoiado na parede. As três pessoas da frente da fila também foram saindo de fininha enquanto Sidneia guardava sua bíblia, mas o cadeirante, que sofria das vistas, pegou impulso e por descuido chocou fortemente a cadeira contra o joelho troncho do Sr. Romeu. O nariz de Romeu já visava o chão, mas Margareth o agarrou antes que caísse e prensando o velho contra a parede, consegui recoloca-lo de pé. E não largou mais!
Vendo que o Sr. Romeu já estava em boas mãos e Raul de mãos borradas, fui procurar um enfermeiro com urgência para limpar aquilo tudo. Encontrei rapidamente um grupinho de pessoas desesperadas que procuravam também um enfermeiro com urgência. Pedi ajuda a um deles, o maior e mais saudável, prometendo, na sequência, ajuda-lo com seu problema. Ele veio prontamente e no caminho foi contando que sua avozinha estava engasgada com uma espinha de peixe. Disse que ficasse tranquilo, pois eu tinha experiência com a manobra de Heimlich, procedimento simples e eficaz para liberar as vias aéreas.
Chegando ao meu posto, encontrei Raul, naquele estado, gaguejando de nervoso, prestes a atacar Sidneia que chorava mais nervosa ainda. Margareth, muito prestativa, ainda mantinha o Sr. Romeu contra a parede, beijando o pescoço e se esfregando no velhinho. Sr Romeu estava entre o sono e o sorriso. Então deleguei ao meu ajudante que fosse rapidamente lavar e trocar o Raul nalgum banheiro enquanto eu conteria os nervos de Sidneia, que estava em estado de choque.
O cara olhou feio e com nojo mas se lembrou que eu tinha experiência com a manobra de Heimlich, agarrou Raul sem dó (de sua roupa) e o levou a contragosto (de ambos) ao banheiro.
Mandei rudemente Sidneia tomar tento e se aprumar ou então eu ia bater na cara. Como tenho esse dom de passar tranquilidade, ela logo interrompeu o choro e eu disse que ela se sentiria melhor se ocupasse seu tempo com alguma atividade. Sugeri, com veemência, que limpasse a sujeira que o Raul deixara no chão.
Enquanto Sidneia buscava balde e panos, Raul, já refeito e usando uma providencial muda de roupa extra, que todo homem prevenido e com diarreia carrega na mochila, vinha acompanhado do meu novo amigo, este, lamentavelmente muito sujo e com cara de poucos amigos.
O rapagão veio ansioso e aflito para que eu demonstrasse minhas habilidades de desengasgamento em sua avó. Então expliquei que minha experiência com a manobra de Heimlich não havia sido 100% positiva.
Contei que, quando um amigo da faculdade teve um problema similar, prontamente executei a manobra, salvando sua vida, mas, talvez por ter colocado um pouco a mais de força, a espinha de peixe fora arremessada da garganta como um míssil e se alojado irremediavelmente no cérebro do colega, que ficou, dali pra frente, com o funcionamento bem alterado.
Não entendi bem o porque, mas aquele homem grande e saudável que até então tinha sido tão cooperativo, parecia de repente meio agressivo e veio pro meu lado.
A última coisa que me lembro antes do soco, foi a visão de Margareth fazendo boca a boca no Sr. Romeu. Caí no chão antes que a preguiçosa da Sidneia tivesse limpado aquela parada do Raul.
Acordei numa poça de sangue coagulado misturada com coisas que não me lembro. Por sorte o soco fora no nariz. Sr Romeu segurava minha mão e me abanava dizendo que era pra eu ter força que eu sairia dessa. Sidneia me olhava de longe e sorria, comentando algo com outras pessoas da fila. Vi Margareth e Raul evadirem-se discretamente das dependências do postinho, de mãos dadas.
Muita coisa havia ocorrido enquanto estive desacordado, mas o bom é que, apesar de ter ficado desmaiado por 3 horas, a fila ainda não tinha andado e ninguém passou na minha frente. Desse dia em diante esse distúrbio me acompanha e sempre rende boas histórias… para os meus acompanhantes.