Em busca do corpo total

“Androgyne, a sagração do fogo”, solo multimídia de Alda Maria Abreu, em cartaz no Mundo Pensante, em São Paulo, ressignifica o corpo no tempo e no espaço, pondo em evidência cada músculo, cada nervo, cada fibra, erguendo diante dos nossos olhos o esplendor do humano. Uma viagem através da potencialidade corporal e sua capacidade plástica, maleável, desdobrável, tensa, expansiva, convulsiva, retrátil. Uma engenharia delicada que se revela em cada movimento ligado à bagagem cultural e emocional do corpo, tanto vezes mitigado pelo sofrimento de exercer-se pela metade.

Bailarina Alda Maria Abreu do Taanteatro no espetáculo "Androgyne, a sagração do fogo
Alda Maria Abreu em “Androgyne, a sagração do fogo”: performance ecopoética

O trabalho, dirigido por Maura Baiocchi, é multimídia, coloca a intérprete contracenando com a sua imagem em três telões, recurso visual que permite que ela vá para dentro de si, abrindo-se a uma viagem cujo destino é natureza e memória. Adentrando a natureza do corpo, encontram-se os reinos da matéria: mineral, vegetal, orgânico que levam à transcendência espiritual que transforma a performance num rito de passagem, um reencontro com o primitivo sagrado. Tudo para resgatar o corpo, numa obra que também faz críticas às camadas de repressão cultural nas quais, há milênios, se enterra o humano. Tirá-lo desta opressão equivale a um renascimento.
O meticuloso trabalho de pesquisa corporal remete à Artaud , incompreendido na sua tarefa inaugural de redimensionar a linguagem cênica, rompendo os limites da dramaturgia tradicional, tendo em vista a expressão total do corpo, sem limites, primitivo e eterno.
A temática abre-se para a androginia primordial, o macho e a fêmea que nos habitam na união dos gêneros. O tema desdobra-se em referências à Joana D’Arc, queimada na fogueira da intolerância cujos ecos chegam aos nossos dias violentando e censurando o corpo e, por extensão, o pensamento. Católicos, evangélicos e até o Facebook – espécie de seita contemporânea – também são alvos de questionamento sobre a censura. Coloca-se em xeque o conceito da proibição e do pecado, esta camada grosseira na qual se sufoca o corpo numa armadura ideológica milenar que ainda resiste, embora se coloque em evidência o nu midiático, a carne humana como mercadoria.
A liberalidade de mentira, a falta de consciência sobre as potencialidades e o significado essencial do corpo são temas que se costuram com maestria na performance que traz a marca do trabalho investigativo do Taanteatro, plasmado nas ideias do professor e crítico alemão Hans-Thies Lehmann, que criou o conceito do teatro pós-dramático, extrapolando a dramaturgia convencional e a mimesis na interpretação.
Androgyne apresenta soluções cênicas eficientes, como a bailarina envolta em rolos de papel que viram combustível da fogueira da intolerância que arde através dos séculos. No papel trançam-se ainda a celulose, a floresta, a destruição da natureza da qual o homem é elemento. Uma cadeia orgânica que clama por respeito. A performance ecopoética põe em xeque valores e ideologias, utilizando uma estética criativa como a imagem de um ovo, símbolo mítico que se quebra e escorre remetendo ao início e ao fim do homem primordial.

(Por Célia Musilli da Rede CartaCampinas)

Androgyne, a sagração do fogo:
Em cartaz até 29 de setembro, no Espaço Mundo Pensante (Rua Treze de Maio, 825, em Bela Vista São Paulo/ Metrô Brigadeiro, fone: 011 5082-2657. Aos sábados às 20h e aos domingos às 19h.
Temporada de outubro: Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323, Sumaré, São Paulo – Metrô Sumaré, fone 011 38011843). De 4 a 27 de outubro, às sextas e sábados às 21h, aos domingos às 19h.
Duração: 60 minutos
Recomendação: 12 anos
Ingressos a R$ 30,00 e 15,00 (meia)